sábado, 9 de julho de 2016

EDUCAÇÃO POPULAR COMO PROCESSO HUMANIZADOR: quais protagonistas?

A encruzilhada com que hoje se depara a Humanidade – entre os sinais cada vez mais graves de barbárie, característicos do Capitalismo em sua face/fase atual , e, por outro lado, alguns sinais convincentes, ainda que moleculares, de compromisso com a vida dos Humanos e do Planeta – nos põe, a todos, a todas, diante de uma situação de escolha decisiva: render-nos à tendência dominante ou ousar construir uma saída alternativa? Esta segunda opção é a que nos leva a apostar no processo de humanização, do qual a Educação Popular, protagonizada pelos Movimentos Sociais Populares com projeto alternativo de sociedade, pode ser um espaço privilegiado.
Ancoradas no legado de teóricos da história contemporânea de ontem e de hoje, como Karl Marx, Rosa Luxemburgo, Antonio Gramsci, José Carlos Mariátegui, Jean Paul Sartre, Erich Fromm, Ernesto Che Guevara, Amílcar Cabral, Albert Nolan, Florestan Fernandes, Álvaro Vieira Pinto, Paulo Freire, Octavio Ianni, Michael Löwy, José Comblin, José Maria Vigil, Leonardo Boff, Maurício Tragtenberg, Leandro Konder, Enrique Dussel, Pablo Richard, Marilena Chauí, Ivone Gebara, entre tantos outros e outras, aqui estamos entendendo como processo de humanização o conjunto de práticas e reflexões características de uma sociabilidade alternativa ao sistema dominante, protagonizada por sujeitos coletivos e individuais, visando ao desenvolvimento das mais distintas potencialidades do ser humano, ser consciente de seu inacabamento e de seu caráter relacional, historicamente condicionado, mas não determinado, por isso mesmo vocacionado à Liberdade.
Um tal processo demanda, entre outros componentes, uma permanente formação omnilateral, da qual a Educação Popular, tal como defendemos, pode ser um espaço decisivo, nessa direção. É essa a aposta central que submetemos a um debate, que queremos realimentar.
Exercitar tal discussão no âmbito da Academia – e para bem além da mesma – pode inspirar-nos confiança, até porque uma das boas características do espaço acadêmico tem sido, a despeito de tantas contradições , o esforço de se preservar a pluralidade epistemológica. Disso resulta, por exemplo, a necessária liberdade de adesão a, ou de defesa de distintas correntes político-filosóficas, inclusive de caráter antagônico. Condição necessária, sem a qual não se conseguiriam avanços nas reflexões críticas de correntes e paradigmas tão diversos.
Na Academia e para além de seus muros, esse debate alcança as distintas áreas de saberes. As ciências sociais – e entre elas a Educação – têm-se constituído relevante mostruário de acalorados debates. O mesmo se dá em relação à Educação Popular. Tendo em vista o espectro de sociedade em que vivemos, resulta inconcebível – além de inútil – a pretensão a um consenso quanto à sua concepção. Característica importante, até pelo fato de não permitir a ninguém o direito de propriedade a uma suposta definição “universal” seja lá do que for, inclusive, claro, de Educação Popular.
No que diz respeito especificamente ao caso da Educação Popular, não é por acaso que ela tem se prestado a uma variada gama de finalidades – legítimas ou de caráter duvidoso. Para se ter uma idéia de sua polivalência, basta que se examinem, mais do que a diversidade de concepções e de conceitos que ela comporta, os sentidos ambíguos de suas práticas. De Educação Popular tem-se, com efeito, usado e abusado, conforme os interesses em voga.
Embora não se trate de uma característica exclusiva do campo da Educação Popular (nem da Educação, nem das Ciências Sociais), tem-se por vezes a impressão de que tal marca se complica ainda mais que de costume, quando referida à área da Educação Popular. Também aqui, a criatividade dos Humanos parece não ter limites. Impulsionados pelas potencialidades artístico-culturais, os Humanos fazem milagres. Inclusive pela magia da Palavra, haja vista a quase inesgotável polissemia dos conceitos teóricos. E o que dizer da ambigüidade que impregna suas práticas?
Educação Popular (EP) serve, por conseguinte, aos mais variados gostos. Dir-se-ia que há EP feita para o Povo, há EP feita com o Povo, há EP feita apesar do Povo, e há até EP feita contra o Povo… Nesse sentido, em busca de uma formulação reconhecidamente abrangente e com alguma chance de relativo consenso hegemônico, pode-se entender Educação Popular como o processo formativo concernente às camadas populares, envolvendo diferentes protagonistas, parceiros e aliados e supostos aliados, animados por diferentes – e às vezes antagônicas – motivações, perspectivas, procedimentos e posturas ético- políticos e pedagógicos, ainda que comportando elementos de sintonia no plano estritamente epistemológico.
Tão abrangente conceito de EP parece aproximar-se de uma panacéia: nele cabe (quase) tudo, desde que se trate de algo ligado a algum tipo de formação das camadas populares. Tal conceito alcança, por exemplo, experiências de ensino, pesquisa e extensão. No caso de situações de ensino, pode permitir a elaboração de políticas públicas ou de programas por uma pequena equipe de especialistas, com o objetivo de que venham a ser “aplicadas” a um determinado segmento popular, tendo este como mero “público-alvo”, destinatário passivo, pronto a “receber” o “pacote” (“Educação bancária”, na acepção freireana).
Com variações de grau, parece ser esse o caráter da grande maioria das experiências vivenciadas em EP, seja no terreno das relações do Estado, seja também no âmbito de outras organizações da sociedade civil. Aqui predomina largamente – ainda que freqüentemente de modo sutil, inclusive sob uma roupagem verbal sedutora – o sentido assistencialista das experiências de EP, nas quais prevalece o sentido da preposição “para”. Quando muito, ornadas por ações que parecem, até certo ponto, dotadas da preposição “com”. Em outras palavras: para essa concepção de EP, o fundamental da experiência é que ela se destine a favorecer as camadas populares. Trata-se de implementar projetos e programas educativos – escolares ou não-formais – destinados às “classes menos favorecidas” ou às “camadas carentes da sociedade”, ainda que não contem com sua participação decisiva nos distintos momentos do processo. Não se trata de duvidar das intenções. O que está em questão é o próprio caráter político-pedagógico do processo, desde sua concepção, passando pelo planejamento, pela implementação, execução, acompanhamento, avaliação, etc.
Conscientes dessa pluralidade de concepções, inclusive em torno de Educação Popular, pretendemos, nas linhas que seguem, ajudar a realimentar o debate acerca dessa questão, começando 1) por tentar situar a concepção dominante de EP; em seguida, 2) cuidamos de explicitar nossa aposta em torno do que entendemos por Educação Popular, sublinhando suas principais características, e, por último, 3) tratamos de traçar o perfil dos protagonistas dessa proposta alternativa de EP.
1 – Ensaiando um conceito aparentemente dominante de Educação Popular
Pelo que foi acima assinalado, parece bastante razoável o entendimento de que não se deve esperar consenso no esforço de definição de conceitos, nas diversas áreas de saberes, em especial no campo das ciências sociais. É sabida a teia de interesses conflitantes (de opções político-filosóficas, de classe, etc.), a atravessar e a condicionar fortemente o olhar de quem se decide por essa ou por aquela concepção. Também, em Educação Popular não se dá de modo diferente. Sem negar uma diversidade mais ampla, aqui nos limitamos a focar pelo menos dois olhares acerca do que é entendido por Educação Popular: um que parece mostrar-se amplamente dominante e um outro que se reclama alternativo ao conceito hegemônico.
Com o risco de simplificação, mas desde já advertindo da diversidade de nuanças existentes no interior desta mesma corrente (que entendemos amplamente dominante), Educação Popular é, sob essa perspectiva, trabalhada enquanto processo formativo concernente às camadas populares, envolvendo diferentes protagonistas, parceiros e aliados e supostos aliados, animados por diferentes – e às vezes antagônicas – motivações, perspectivas, procedimentos e posturas ético- políticos e pedagógicos. Vamos tentar explicitar os termos componentes dessa concepção dominante:
– Processo formativo – assumindo, mais freqüentemente, um caráter de educação geralmente não-formal, mas que também pode dar-se nos espaços escolares.
– Concernente às camadas populares – Trata-se de uma proposta especificamente voltada para os segmentos populares, sem que estes venham necessariamente a tomar parte decisiva nos diversos momentos de seu processo (da concepção da proposta à sua avaliação, passando pela implementação, metodologia, dinâmicas e outros passos constitutivos). Os segmentos populares são tratados sobretudo como alvo, como destinatários da proposta. A responsabilidade da elaboração desta circunscreve-se à alçada de outros sujeitos e instâncias, contando-se com o concurso dos destinatários na execução das tarefas. A isso dificilmente se pode chamar de uma ação de protagonista, de forma efetiva, apesar da insistência em tratar-se tal experiência, não raro, como “freireana”, até como recurso de legitimação.
– envolvendo diferentes protagonistas, parceiros e aliados e supostos aliados, animados por diferentes – e às vezes antagônicas – motivações, perspectivas, procedimentos e posturas ético- políticos e pedagógicos. – Como se trata de uma proposta educativa fundamentalmente elaborada para os segmentos populares – ainda que eventualmente também com os mesmos -, observa-se uma miscelânea de participantes e aliados. Aqui se envolvem sujeitos variados, públicos e privados, instâncias governamentais como instâncias particulares (ONGs, filantrópicas, confessionais, entre outras), além dos próprios destinatários. Da mesma proposta participam aliados com as mais distintas motivações, interesses, perspectivas, procedimentos e posturas. Até supostos aliados: eventuais sujeitos que, não tendo compromisso efetivo com os setores populares, alimentam interesse de recolher da experiência algum tipo de proveito (eleitoral, isenção ou redução de impostos)…
2. Educação Popular, uma aposta em debate
O que trazemos, a seguir, com o propósito de contribuir com a realimentação do debate, resulta do nosso aprendizado contínuo junto às classes populares, especialmente por meio do acompanhamento das lutas dos movimentos sociais populares e seus aliados, bem como da contribuição teórica especificamente voltada à Educação Popular de figuras tais como: representantes da Pedagogia Socialista, Antonio Gramsci, Paulo Freire, Florestan Fernandes, Carlos Rodrigues Brandão, Miguel Arroyo, Oscar Jara, João Francisco de Souza, Mario Acevedo Aguirre, João Viegas Fernandes, Reinaldo Fleuri, Eymard Vasconcelos, Carlos Nuñez Hurtado, Paulo Rosas, Balduíno Andriola, Ivandro da Costa Sales, José Comblin, Roseli Caldart, Maria Eliéte Santiago, Maria Valéria Rezende, Ivone Gebara, entre outros e outras.
Entendemos Educação Popular como o processo formativo permanente, protagonizado pela Classe Trabalhadora e seus aliados, continuamente alimentado pela Utopia em permanente construção de uma sociedade economicamente justa, socialmente solidária, politicamente igualitária, culturalmente diversa, dentro de um processo coerentemente marcado por práticas, procedimentos, dinâmicas e posturas correspondentes ao mesmo horizonte.
Explicitando os termos de tal enunciado, temos:
– Educação Popular como processo formativo permanente – Tendo em vista o caráter sabidamente inconcluso dos Humanos (Freire), seu processo de humanização estende-se ao longo de sua vida, de modo ininterrupto. Todo o seu (con)viver se acha atravessado de práticas formativas, nos mais variados espaços e ambientes comunitários e sociatais: tribal, familiar, lúdico, produtivo, nas relações de espacialidade, de gênero, de etnia, de geração, nas relações com a Natureza, com o Sagrado… Ao que se deve acrescentar que não se trata de mera aquisição de conhecimentos, mas antes de um processo praxístico (Marx) que comporta rumo, caminhos e posturas. Eis por que não se trata apenas de se fazer coisas consideradas significativas, mas sobretudo de que estas apontem para um horizonte de contínua humanização e respeito pelo Planeta, afinal, como afirmava a personagem José Dolores, do filme “Queimada” (“Burns”), “É melhor saber para onde ir, sem saber como, do que saber como e não saber para onde ir.” Não se conclua daí que só nos interesse perseguir o rumo. Este não se alcança, a não ser por trilhas que apontem em sua direção. De pouco adianta proclamar-se, alto e bom som, que se abraça tal horizonte, quando os pés sistematicamente pisam trilhas que acenam para um rumo inverso ao declarado. E comporta, ainda, postura adequada por parte dos caminheiros, de modo a respeitar os distintos modos e ritmos de caminhar, desde que apontando, na prática, para a mesma direção.
– Protagonizado pela Classe Trabalhadora e seus aliados – Importa, desde já, dissipar a idéia de “Classe Trabalhadora” como sinônimo do conceito trabalhado nos mesmíssimos termos de outros contextos históricos. Vivendo tempos diferenciados (com as recentes conquistas científico-tecnológicas, com a reestruturação produtiva, com a nova organização dos processos de trabalho, com o desemprego estrutural, etc.), convém atualizar o conceito de Classe Trabalhadora, numa linha como a adotada por autores como Mészáros e Ricardo Antunes, por exemplo. Ou seja, aqui entendemos Classe Trabalhadora como todos aqueles e aquelas que, ao viverem do seu trabalho, vão tomando consciência das condições concretas do processo produtivo, das razões de sua exploração, do tipo de relação que garante a apropriação e fruição por tão poucos do conjunto das riquezas produzidas pelos Trabalhadores e Trabalhadoras do mundo inteiro. E, à medida que vão tomando consciência desse estado de coisas, vão passando a empenhar-se nas lutas pela construção de uma nova sociedade. Nova sociedade em que, não se trate de inverter a posição dos dominados que, conquistando o poder, passam a reproduzir as ações dos seus ex-senhores, mas em que se trate de subverter ou mudar radicalmente o caráter das relações, passando de relações piramidais a relações horizontais.
– continuamente alimentado pela Utopia em permanente construção de uma sociedade economicamente justa, socialmente solidária, politicamente igualitária, culturalmente diversa – Dentre os equívocos mortais cometidos pelos protagonistas do socialismo real podemos destacar dois: o de confundirem Revolução com o “assalto ao quartel”, que consumia grande parte de suas energias devotadas a forjar estratégias e táticas da luta armada; e contentar-se com, uma vez no poder, inverter a posição entre opressores e oprimidos, sem cuidar de abolir o caráter da relação! Resulta, pois, indispensável o incessante cultivo das condições necessárias à vitalidade da causa, do projeto de se construir uma nova sociabilidade, que se mostre alternativa à ordem dominante, seja no plano das macro-relações, seja no terreno das micro-relações. O que implica o contínuo esforço de superação da ordem capitalista (quer do ponto de vista econômico, quer do ponto de vista político, quer do ponto de vista cultural, esferas dinamicamente interrelacionadas), com vista à instauração de um novo modelo de produção e de consumo, de uma sociabilidade alternativa.
– dentro de um processo coerentemente marcado por práticas, procedimentos, dinâmicas e posturas correspondentes ao mesmo horizonte. – Como acima já foi assinalado, não se trata apenas de perseguir o horizonte desejado, mas igualmente de escolher os caminhos que apontem na mesma direção. Mais uma vez, isto não é algo que se possa comprovar com discurso. Há de se recorrer ao caráter das práticas do dia-a-dia. Inútil pretender-se alcançar um horizonte desses, largando mão das vias que lhe são próprias. Educar para a Liberdade implica seguir caminhos de Liberdade (José Comblin), de tal modo que uma coisa não se faz sem a outra, mediadas, ambas, pela postura, pelo jeito próprio dos protagonistas – mulheres e homens – de caminhar nessa direção.
Nesse sentido, o estilo ainda amplamente dominante de Educação Popular centra nos dirigentes a prerrogativa quase exclusiva da tomada de decisões, contrariando frontalmente a afirmação de Rosa Luxemburgo, para quem “”A tendência dominante que caracteriza a marcha do movimento socialista na atualidade e no futuro é a abolição dos dirigentes e da massa dirigida.” (LUXEMBURGO, ap. TRAGTENBERG, 1986, p. 73).
Feita a explicitação do que aqui entendemos por Educação Popular, convém ainda assinalar suas principais características. Com efeito, essa nossa aposta caracteriza-se por múltiplas marcas, dinamicamente interrelacionadas, das quais sublinhamos as seguintes:
– que seja capaz de despertar em seus protagonistas (individuais e coletivos) o sentido de sua incompleteza, da sua condição inconclusa, o que, em vez de induzi-los a se renderem a um cômodo rótulo ontológico, propicia uma permanente disposição de irem se tornando…
– que tome seriamente em conta a condição humana de seres relacionais, que se educam em comunhão, no mutirão do dia-a-dia;
– que propicie aos seus participantes o permanente aprimoramento de sua capacidade perceptiva, ajudando-os a ver, a ouvir, a sentir, a intuir mais e melhor o que, ou antes não conseguiam, ou só conseguiam de forma muito fragmentária e descontínua;
– que os estimule a recuperarem a memória histórica das experiências humanas, nos mais diferentes tempos e espaços;
– que seja capaz de trazer para dentro de seus espaços os desafios do dia-a-dia enfrentados pelos seus protagonistas, dispondo-se estes a ensinar e a aprender, a partir de e com as pessoas comuns do campo e da cidade;
– que estimule seus protagonistas à permanente curiosidade epistemológica, mantendo-os em incessante estado de busca;
– que assegure o protagonismo do conjunto de seus participantes, em todos os passos e “fases” do processo educativo;
– que lhes propicie o empenho em criar e assegurar condições favoráveis de uma sociabilidade alternativa, articulando-se adequadamente macro e micro-relações, por meio do incessante esforço (individual e coletivo) de apostar mais em atitudes do que em atos libertários isolados, ainda que estes também sejam bem-vindos;
– que permita aos seus protagonistas a descoberta e o exercício de suas potencialidades e talentos artístico-culturais, sem abdicar de ajudá-los também a identificar e a superar os próprios limites, pelo exercício contínuo da (auto-)crítica;
– que promova o recurso a múltiplas linguagens, de modo a não tornar seus participantes reféns da do uso exclusivo da oralidade ou da escrita…
– que crie condições para os seus protagonistas de exercitarem, todos, a adequada articulação de suas dimensões discente e docente;
– que favoreça permanentemente o exercício do rodízio ou da alternância de funções e cargos entre os seus protagonistas;
– que aposte no incessante aprendizado, por parte dos seus protagonistas, da coerência entre sentir-pensar-querer-agir;
– que lhes assegure condições de permanente superação da dicotomia entre trabalho intelectual e trabalho manual;
– uma Educação Popular cujos protagonistas, longe de se acomodarem e sucumbirem à tendência burocratizante e imobilizadora tão característica dos espaços institucionais, se vejam mais empenhados em ousar ações instituintes, inspirados nas atitudes desinstaladas e desinstaladoras do espírito peregrino, à luz de uma Utopia libertadora.
– uma Educação Popular que, a partir do local, se abra para o mundo, propiciando aos seus protagonistas sentirem-se e agirem como cidad@os do mundo e parceiros do mesmo Planeta;
– que se mostre ciosa de apostar num processo educativo permanentemente temperado pelo exercício da contemplação estética, alimentado pelo ininterrupto recurso às diferentes artes e à multimilenar sabedoria acumulada pela Humanidade, longe de se restringir à Ocidentalidade…
– Uma Educação Popular que estimule a capacidade de sonhar (o sonho desperto, de que fala Ernst Bloch), numa perspectiva de Utopia libertadora;
– que aposte numa formação omnilateral que favoreça o desenvolvimento de todas as potencialidades e dimensões de Ser Humano (subjetivas, biopsico-sociais, de Trabalhador/Trabalhadora, etária ou geracional, ecológica, de gênero, de etnia, ética, de espacialidade, de sua relação com o Sagrado…
3. Que perfil de protagonistas é capaz de alimentar esse processo?
Quais as condições requeridas e quem vai tocar um projeto de Educação Popular, cuja marca principal seja o compromisso de assegurar as condições mais favoráveis ao processo de Humanização? É o de que passamos a tratar, a seguir.
Iniciando pelas condições desse processo, vejamos algumas:
– recuperar e fortalecer, nas macro e micro-relações do dia-a-dia, o horizonte classista – Isto deve se dar por meio de atitudes tais como: ampliação da agenda para além de demandas apenas de um só Movimento, em favor de uma prática que, sem abandonar suas reivindicações específicas, tenha seu principal foco nas lutas do conjunto da classe trabalhadora do campo e da cidade;
– investir maciçamente, e de forma crescente e qualitativa, no processo de formação contínua do conjunto de seus membros – Não se trata de investir na formação apenas de uma parte, mas do conjunto dos protagonistas. Mais: formação para além da educação escolar (o que não implica desprezo pela educação escolar: depende de que Escola), de modo a implicar uma formação integral, omnilateral, que seja capaz de desenvolver as mais distintas potencialidades dos seus membros, numa perspectiva humanizadora;
– revisitar densos relatos históricos do processo educativo entre os povos indígenas, bem como os bons clássicos da Pedagogia Socialista (os “utopistas”, os marxistas, Pistrak, Makarenko, Gramsci…), além dos teóricos atuais da Educação Popular (Paulo Freire, Carlos Rodrigues Brandão, Rui de Celso Beisiegel, Moacir Gadotti, Balduíno Andriola, Mario Acevedo Aguirre, Oscar Jara, Balduíno Andriola, Carlos Nuñez Hurtado, Miguel Arroyo, Moacir Gadotti, João Francisco de Souza, João Bosco Pinto, Carlos Alberto Torres, Marco Raul Mejía, Rosa Maria Torres, Bernard Charlot, Victor Valla, Jacques Gauthier, Paul Taylor, Paulo Rosas, Ivandro da Costa Sales, Eymard Vasconcelos, Reinaldo Fleuri, Ana Maria Araújo Freire Timothy Ireland, José Francisco de Melo Neto, Woicieh Kulesza, Luiz Gonzaga Gonçalves, Maria de Lourdes Barreto de Oliveira, Maria Valéria Rezende, Roseli Caldart, Maria Eliéte Santiago, Cornelis e Maria Salete Van der Poel, Tânia Maria M. Moura, entre outros e outras, inclusive tantos protagonistas coletivos espalhados pela América Latina, pelo Brasil, pelo mundo…), não com o objetivo de reproduzi-los, mas de neles e nelas colher inspiração, na perspectiva de reinventar práticas e caminhos alternativos aos desafios de hoje, à grade de valores hoje dominante;
– exercitar a memória histórica – Inclusive por meio da Mística, de modo a reavivar a memória de lutas de movimentos passados e contemporâneos, bem como de figuras do Povo, nas diversas partes do mundo, que atestaram e atestam fidelidade à causa dos-que-vivem-do-trabalho;
– superar a armadilha dos instrumentos da Democracia burguesa, a exemplo do envolvimento desproporcional em campanhas eleitorais, cujos resultados fundamentais amargamos, desde nossos bisavós, e podemos conhecer por antecipação…
– pôr em prática, como ponto de honra, o mecanismo da alternância ou rodízio de cargos e funções, permitindo a quem é de base ter acesso a funções e cargos de coordenação, e a quem já cumpriu funções administrativas ou de coordenação voltar a atuar na e como base;
– articulado ao mecanismo da alternância de cargos e funções, cumpre sublinhar o processo de radicalização democrática, ao interno dos Movimentos, de modo a implicar, por exemplo, a descentralização das decisões, por meio da atuação orgânica e decisiva dos organismos de base, qualquer que seja o nome que se lhes dê (conselhos, células, brigadas…).;
– promover o exercício das artes, em suas mais distintas expressões, favorecendo a descoberta e o desenvolvimento dos talentos a serviço do coletivo;
– intimamente ligado ao exercício das artes, tão ao gosto da Educação Popular, importa, de um lado, fazer um bom uso de múltiplas linguagens (música, poesia, teatro, desenho, fotos, vídeo…), superando a tendência tão generalizada do monopólio da oralidade ou da escrita, perpetuando uma das menos felizes heranças ocidentais; e, por outro lado, fazer uso de uma linguagem compreensível pelos educandos interlocutores (José Comblin refere-se, com freqüência, a esse cacoete academicista tão excludente);
– aprimorar o exercício das relações de espacialidade, tanto as que se referem ao cuidado do Planeta, quanto às que dizem respeito às características culturais, ligadas às procedências regionais (quem é da capital em relação a quem é do interior; quem é da cidade em relação a quem da roça; quem mora no centro da cidade em relação a quem mora na periferia; quem é do Norte/Nordeste em relação a quem é da região Centro-Sul; quem é do Brasil em relação a quem é da Bolívia; e assim por diante. Nesse terreno, ainda há muito chão a andar, tendo em vista os preconceitos praticados e nem sequer percebidos…
Combinadas com tais requerimentos, importa trabalhar igualmente o plano estritamente individual dessa formação, de modo a que esses protagonistas individuais compreendam e assumam suas responsabilidades, nesse processo. Quais seriam, então, as características correspondentes a esses sujeitos, historicamente chamados a protagonizar, por meio da Educação Popular (na perspectiva da aposta acima explicitada), os passos desse processo de humanização? É preciso que
– sejam pessoas profundamente amorosas, apaixonadas pelo Povo, não importando que país ou região habite, e pela nossa Casa Comum, a Mãe-Natureza;
– sejam capazes de recuperar a primazia da perspectiva classista sobre quaisquer interesses de segmentos particulares, do âmbito local ao internacional, ou melhor dito, capazes de experienciar nos embates locais sua dimensão internacional, ao tempo em que, ao participarem de lutas internacionais, são capazes de perceber as implicações locais;
– se refontizem incessantemente da força revolucionária da memória histórica, recuperando lutas, façanhas e conquistas do passado e respectivos protagonistas;
– não abram mão do persistente exercício de crítica e auto-crítica;
– sua permanente disposição à autocrítica, alimentada pelo contínuo exercício da mística revolucionária, os ajuda sobremaneira a tornar viva e eficaz, enquanto intervenção presentificada, a memória histórica, de modo a não engessarem num passado longínquo e estéril suas referências de luta e de militância;
– ao apreciarem com carinho a memória e o testemunho exemplar de revolucionários e revolucionárias de ontem e de hoje, cuidam de evitar transformá-los em “gurus”, preferindo apostar mais na causa, no projeto, do que em seus protagonistas, e se a estes também prestam reverência, o fazem na medida em que encarnam o projeto;
– constante acompanhamento crítico da realidade social, mediante o recurso a fontes fidedignas, em função do que tratam de aprimorar suas estratégias de intervenção;
– efetiva vigilância no sentido de assegurar condições irrenunciáveis do protagonismo dos distintos segmentos da sociedade civil, em sua luta de libertação;
– no relacionamento com as pessoas e grupos de base, saibam pôr em prática uma pedagogia da escuta, aprendendo com os outros e buscando também exercer sua dimensão docente;
– tenham consciência de que a qualidade de sua aposta na Utopia é constantemente testada na oficina de tecelagem do Cotidiano, a partir dos gestos minúsculos e aparentemente invisíveis;
– sejam pessoas fortemente desinstaladas e desinstaladoras, ao mesmo tempo inquietas na tomada de iniciativas, e profundamente serenas, nos momentos de crise e de impasse;
– estejam conscientes de que navegam sobre águas revoltas, e quase sempre navegam à contra-corrente, o que implica uma postura ao mesmo tempo firme e serena de lutadores sociais;
– mostrem-se efetivamente empenhados no seu processo de formação continuada, nas distintas dimensões do cotidiano e da vida pessoal e grupal;
– exercitem, a cada dia, a mística revolucionária, em virtude da qual asseguram a renovação de seu compromisso ético-político, no horizonte de uma Utopia libertadora.
Considerações mnemônicas
Como em tantos outros campos de saberes, também no terreno das ciências sociais, e mais particularmente no âmbito da Educação Popular, os conceitos resultam sempre polissêmicos. Não é por acaso que uma das características básicas do espaço acadêmico é o exercício da pluralidade epistemológica. Isso não impede, antes nos estimula a buscarmos o mínimo de entendimento possível, inclusive no plano teórico-conceitual, de modo a que, concordando ou discordando, compreendamos melhor os olhares a partir dos quais e com os quais se pode trabalhar Educação Popular.
Nesse sentido, ao tempo em que reconhecemos a diversidade conceitual existente, cuidamos de explicitar um conceito de Educação Popular que corresponde à nossa aposta, ancorado num amplo legado de teóricos de ontem e de hoje, do qual Paulo Freire pode ser tomado como a principal referência.
Do amplo leque de características enunciadas acerca dessa nossa aposta de Educação Popular, que submetemos ao debate, podemos aqui sublinhar que se trata, fundamentalmente, de uma experiência de formação humana e de convivência com o Planeta necessariamente vinculada ao processo de Humanização, que se contrapõe radicalmente ao modelo capitalista dominante, seja na esfera econômica (organização da produção e do consumo), seja na esfera política (organização das macro e micro-relações de poder), seja na esfera cultural (sobretudo na grade de valores).
Trata-se de um processo de humanização que pressupõe uma longa, complexa e ininterrupta experiência de formação, contemplando o desenvolvimento das mais distintas dimensões e potencialidades do ser humano, protagonizada por sujeitos individuais e coletivos, cuja prática educativa aponte necessariamente, desde as relações do dia-a-dia, para o alvo desejado, ou seja, a construção de uma sociedade economicamente justa, socialmente solidária, politicamente igualitária e culturalmente plural.
Textos básicos de inspiração imediata
CALADO, Alder Júlio F. Movimentos Sociais Populares rumo a uma nova Sociedade: do consenso ideológico ao dissenso alternativo. In: Revista eletrônica. In: Gonçalves, Moisés A. e CONCEIÇÃO, Geraldo Magela (Orgs.). Outros Olhares – Debates contemporâneos. Belo Horizonte: Leiditathi, 2008, pp. 13-60.
CHAUVEAU, Gerard. L´École du travail dans la pensée ouvrière. In: Ville École Intégration, n. 113, Paris, juin 1998.
COMBLIN, José. Vocação para a Liberdade. São Paulo: Paulus, 1999.
FREIRE, Paulo. Pedagogía del Oprimido. 2ª ed.,México: Siglo Veintiuno, 1971.
____________. Ação Cultural para a Liberdade e outros escritos, 3a. ed., Rio de Janeiro, 1978.
___________. Pedagogia da Autonomia. 6a. ed., Rio de Janeiro: 1997.
FROM, Erich. Conceito Marxista do Homem, 2a. ed., Rio de Janeiro: 1962.
MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. In: FROM, Erich. Conceito Marxista do Homem, 2a. ed., Rio de Janeiro: 1962.
SERMAN, William. La Commune. Paris: Presses Universitaires de France, 1971.
TRAGTENBERG, Maurício. Reflexões sobre o Socialismo. São Paulo: Editora Moderna, 1986.

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