quinta-feira, 7 de julho de 2016

COMBLIN, José. A Força da Palavra. Petrópolis: Vozes, 1986: Notas a título de resumo


Alder Júlio Ferreira Calado

A Força da Palavra dá sequência ao conjunto de estudos sobre a missão do Espírito Santo no mundo. Projeto arquitetado pelo autor, sobretudo a partir do seu livro-esboço publicado em 1978, O Espírito no Mundo, onde se acham as palavras-geradoras (“Ação”, “Palavra”, “Liberdade”, “Povo”, “Vida” “Profecia”...), que ele vai convertendo sucessivamente em livros, durante três décadas.
A Força da Palavra é, portanto, sua terceira obra de seus estudos pneumatológicos, contanto com o mencionado livro-esboço (ou a segunda dentro do plano geral da obra). O presente estudo perfaz 406 páginas. Consta de sete capítulos, além daintrodução e de um alentado anexo, em cinco tópicos, acerca datarefa dos teólogos latino-americanos. Na Introdução, o autor reflete sobre a impotência das teologias (católicas e protestantes) de compreender os desafios da evangelização, e, em seguida, busca situar de que modo a Palavra vai sendo revelada pela ação do Espírito Santo, no meio dos pobres.
O primeiro capítulo aborda o sentido da Palavra, por meio da qual Deus age. Palavra incarnada, feita pobreza, no meio do povo dos pobres. Donde sua força e sua fraqueza. Palavra do Pai que o Espírito vai infundindo em Jesus e em seus discípulos. Palavra que provoca divisões entre ricos e pobres, e entre verdadeiros e falsos pastores. Palavra cuja recepção se dá de diferentes modos, através dos tempos. Palavra que comporta força, mas também fraqueza.
No capítulo II, o autor mergulha na história do Cristianismo,a perscrutar a ação da Palavra diante da realidade da civilização greco-romana, a7444pontando seus principais desafios. Segue-se um passeio pela Cristandade confrontada pela Palavra (cap. III). No capítulo IV, a atenção do autor se volta a relatar os percalços daReforma diante da Palavra, enquanto a Modernidade é, por sua vez, confrontada pela Palavra, no cap. V. Já no capítulo VI, o autor destaca os impactos do discurso revolucionário, à luz da Palavra, destinando o último capítulo a refletir sobre como são enfrentados atualmente os desafios, diante do que inspira a Palavra.
            Vamos, em seguida, destacar os principais pontos analisados pelo autor, em cada capitulo, iniciando pela Introdução.

Introdução (pp. 9-23)
- Deus é ação e é palavra. Ele age pela palavra. Os patriarcas e os apóstolos dão, todos, testemunho de que a Palavra de Deus é forte. Mas, parece que isto faz pouco efeito em nós. Por que será? Até que ponto não tem a ver com o fato de tudo esperarmos do que dizem as instâncias eclesiásticas das quais, não raro, se ouve umapalavra pouco compreens7ível, e em dissintonia com as inquietações do presente. Talvez se fale muito e se diga pouco. Talvez porque se teime em falar-se em evangelização, sem maior sensibilidade ao que diz o Evangelho: “Faz 50 anos que falamos em evangelização, mas não conseguimos descobrir o que é. Por quê? Porque não sabemos o que é o Evangelho, o que é a palavra que o mundo espera.” (p.10). Evangelizar supõe interlocutores que se comunicam, supõe diálogo. A Palavra de Deus toma em conta as particularidades dos destinatários da Palavra, bem como a diversidade de situações e circunstâncias concretas. (77777pp. 11 e 12).
- Digno de observação é o alerta que o autor faz, já na introdução, de que não tem qualquer pretensão de dizer “qual” é a Palavra de Deus. Seu propósito é de buscar identificar sinais da Palavra de Deus, partindo do contexto latino-americano, especialmente daqueles cristãos inseridos nas lutas de libertação desses povos. (cf. p. 11).
- A introdução está dividida em duas partes: na primeira (que vai dap. 12 à 20), o autor trata de situar como anda o que ele chama de teologia da evangelização; enquanto a segunda parte da introdução vai da p. 20 à p. 23, e trata da relação entre a Palavra e o Espírito Santo.
- Um primeiro desafio destacado pelo autor: o fato de as teologias cristãs (católicas e protestantes) terem sido afetadas pelo intelectualismo, por influência da filosofia grega. Teólogos que pretendiam que seu discurso representasse a Palavra de Deus, ainda quando fundado num de inspiração da dialética medieval tiveram areação de outros que passaram a basear-se nos textos bíblicos, como se assim agindo, de forma também racionalista, tivessem encontrado “a” resposta. Assim fizeram teólogos tais como K. Barth, F. Brunner, E. Bogarten, R. Multmann, ao pretenderem restabelecer a verdadeira mensagem evangélica, esquecendo-se de que também isto não se faz de forma direta, pois implica os limites humanos também dos teólogos que a interpretam. (cf. p. 13). Essa tendência da teologia protestante durou até por volta de 1960, enquanto a teologia católica se manteve na redoma neotomista, fincados em suas elucubrações escolásticas e resistente a dialogar com os contemporâneos, até o Concílio Vaticano II. (pp. 13-14).
- Com a queda das teses levantadas seja pela escolástica, seja pelas formulações dos teólogos da dialética (desde o séc. XIII), o que caiu mesmo foi a possibilidade de uma teologia saber definir qual o núcleo central da Palavra de Deus para todos os tempos. Isto foi colocado, em 1961, por jovens teólogos alemães, a exemplo de Käsemann. Não dá para se definir o núcleo da fé válido para todos os tempos. Nenhuma teologia é capaz de estabelecer um núcleo universal. (p. 15).
- A própria Bíblia foi composta de diferentes evangelhos, expressando distintos contextos históricos, o que põe um problemaa quem pretenda deter “a” verdade sobre a Palavra de Deus. Deus se dá a conhecer nos acontecimentos. A Palavra, mais do quepalavra, é acontecimento, sendo Jesus de Nazaré o grande acontecimento: “O evangelho de Jesus não foi um discurso, mas sua própria vida, e ele próprio. Para descobrir a revelação de Deus,a teologia há de estudar a história, perscrutar os acontecimentos. Somente acompanhando o desenrolar dos acontecimentos é que ela poderá descobrir a presença de Deus no mundo. (...) Por fim, constatam esses teólogos, de acordo com a própria Bíblia, que Deus não se conhece por meio de atos intelectuais, mas pela ação. Deus está no fim da história. Caminhando para esse fim é que o conhecemos. Buscar a Deus é caminhar pela história deste mundo, participar da esperança da história, trabalhar e lutar para um mundo diferente. Deus revela-se na esperança ativa da ação transformadora do mundo.” (p. 16).
- A importância da ação de Deus na história não prescinde dapalavra. Deus também se mostra ao seu povo por meio da palavra, pela boca dos seus profetas. São dimensões complementares. O desafio é discernir as condições em que a comunicação humana reflete, com fidelidade, a palavra de Deus. (p. 17)
- No pontificado de Pio XII, se dá o auge do movimento missionário conhecido como “Missões” (Missão de Paris, Missãoda França, Missão de Marselha, padres operários), cujos protagonistas estavam convictos de que bastaria inculturar-se no mundo dos seus contemporâneos, armados apenas do método darevisão de vida, sem atentar para o fato de que, se é verdade que Deus se manifesta na vida, também é certo que é preciso perscrutara Palavra de Deus, que por vezes vem escondida. Não foi bem sucedida essa experiência. Com o Vaticano II, o cardeal Lercaro clama pela opção pelos pobres, mas a Igreja do Primeiro Mundo aferrou-se mais à opção pela “classe média” (expressão com que os norte-americanos designam a burguesia). Foi somente a partir de Medellín que se dá, na América Latina, essa escuta da Palavra de Deus, a partir dos pobres. (pp. 17-18)
- É também pela leitura renovada da Bíblia, feita a partir do povo dos pobres, que estes vão descobrindo sua vocação de destinatários privilegiados das promessas da Palavra de Deus. Na Bíblia, os pobres descobrem seu passado e seu futuro. (pp. 19-20).
-No segundo tópico da Introdução, trata o autor da relação entre aBíblia e o Espírito Santo. A Bíblia recolhe a palavra de Jesus, tal como a tradição a percebeu. Essa Palavra fala a cada um, numa diversidade de situações. Saber interpretar o sentido dessa palavra é um dom do Espírito, a iluminar os cristãos a comunicarem o que vem da Palavra: “A palavra é para ser falada, não para ser possuída. Ela não é objeto de propriedade, mas canal de comunicação. O sentido existe na comunicação.” (p. 22).
  Apesar de, e para além das limitações humanas, presentes na própria composição dos evangelhos, subsiste a presença do Espírito Santo que é preciso discernir, como o fizeram os apóstolos, como o fez Paulo, pela fidelidade à voz do Espírito do Ressuscitado. (p. 23)
  Nesse sentido, a teologia não pode reivindicar uma condição privilegiada de identificação da Palavra. O teólogo pode ser inspirado, não como teólogo, mas como cristão, embora disponha de uma ferramenta que facilita tal leitura, à medida que ajude a ler o passado da história da Igreja e à medida que ajude a discernir ainspiração do Espírito Santo. (p. 23)

   Cap. I: “E a Palavra se fez carne” (Jo 1, 14) – constitui o título do capítulo I (pp. 25-68), em que o autor explicita o modelo por ele adotado para refletir sobre como se dá a história da Palavra de Deus, nos entrechoques de nossa história.
- Na perspectiva assumida pelo autor, “carne” é interpretada como pobreza, como o mundo dos pobres. Deus se fez pobreza, ouviu o clamor dos oprimidos e anunciou-lhes a libertação. Portanto, dois pontos nucleares: ouvir o clamor dos pobres e o anúncio aos mesmos da boa nova. (p. 25).
  O cap. I vem distribuído em três parágrafos: 1) A Palavra daPobreza (pp. 25-47); 2) A recepção da Palavra (47-58); e 3) Força e fraqueza da Palavra (48-58), sendo que cada um dos três parágrafos se distribui, por sua vez, entre tópicos e sub-itens. No caso do primeiro parágrafo, o autor o aborda em dois momentos: primeiro, explicita a dimensão profética da Palavra, ou seja, em que consiste aposição de Jesus diante do grito dos pobres; em seguida, enfatiza adimensão evangelizadora da Palavra: o anúncio da Boa Nova dalibertação aos pobres.
- A respeito de Jesus, os evangelhos realçam o anúncio da Boa Nova e sua paixão e crucifixão. Realçam Sua ação e Sua Palavra. Do sentido da Ação, o autor tratou no livro anterior (“O Tempo daAção”); ao sentido da Palavra dedica este livro. Fundado na tradição neotestamentária mais antiga (Mc, Hb, Fp), o autor recupera a dimensão mais humana de Jesus, diante do grito, dianteda dor, Ele próprio tendo experimentado situação de abandono e impotência. Ou seja: sua experiência quenótica torna ainda mais compreensível sua solidariedade radical à dor dos pobres, ao grito dos pobres. (pp. 25-27).
- Por conta da teologia tradicional, o catolicismo popular também tem dificuldade de assimilar um Jesus tão humano, que tenha tido dificuldade de acolher o desfecho de sua paixão e morte numa cruz, de um Jesus que tenha expresso um grito de agonia e de abandono. Há uma tendência de aliviar a expressão desse sofrimento em Jesus, tornando-o alguém mais sereno, mais resignado, sem aceitar sua resistência tão humana à tortura, à crucifixão. Mas, é aí que reside o lado profundamente humano de Jesus, que O faz também profundamente solidário com o grito dos oprimidos, sementes do Novo Israel (cf. pp. 27-30).
- Importa não perder de vista, no mistério da paixão de Jesus, um duplo aspecto profundamente interligado: como o lembra a Carta aos Hebreus, há em Jesus o grito de agonia, de impotência até, mas, por outro lado, de profunda entrega e confiança na ressurreição. O grito de amargura não ressoa surdamente pelo universo, é escutado pelo Pai. (cf. p. 30)
Jesus é a Palavra do Pai. O Pai também quis expressar-se na paixão do Filho, eis por que Jesus “se fez carne e sangue até à cruz como enviado pelo Pai.” (p. 30)
- Diferentemente do discurso ou dos oráculos pronunciados pelos profetas antigos, numa espécie de penumbra, Jesus vem como aprópria Palava do Pai, revelada em sua plenitude, não mais como um discurso, como uma aproximação. (cf. p. 31)
- Assim como Jesus deu sequência à ação dos profetas do Antigo Testamento, inspirados e assistidos pelo Pai e pelo Espírito Santo, assim também o novo Povo de Deus (o do Novo Testamento) também dá continuidade à obra do Ressuscitado, com a presença e atuação do Seu Espírito. (cf. p. 31)
- O grito de angústia de Jesus continua no grito do povo dos pobres, hoje, em seu sofrimento, em sua humilhação e suas perseguições, com a impactante presença e intervenção do Espírito Santo: “O Pai fala por meio do seu Espírito que infunde a suapalavra em Jesus, e essa palavra pronunciada por Jesus se prolonga nos discípulos.” (p. 33).
- O grito procede de uma imensa multidão, a quem a boa nova é anunciada, mas são poucos os que vão anunciar essa palavra, por meio de um ministério para o qual Deus chama: trata-se do ministério das palavras. (p. 34)
 -Esses “ministros das palavras” não são chamados para pronunciarem palavras suas ou do povo ou mesmo da cultura. Não são professores a transmitir ensinamentos culturais. São chamadosa pronunciarem palavras especiais que os profetas atribuem a Deus: “Os profetas não recebem revelações para si próprios. Tudo o que são, têm e sabem, existe em função do povo de Deus. Eles são os condutores. Em geral, o povo não os reconhece como tais, sobretudo as autoridades. Porém, eles recebem esta autoridade de condutores do próprio Deus. As famosas narrações das vocações de Moisés, Samuel, Elias, Isaías, Amós,  Oséias, Jeremias, Ezequiel, enfim de quase todos os profetas conhecidos, procuram destacar que não são eles os autores das suas palavras. Eles não escolheram a sua missão. Foi imposta, de certo modo, à revelia deles” (p. 35).
  Os profetas são pobres ou foram reduzidos à pobreza, como Moisés a peregrinar pelo deserto. Não são figuras do templo, das sinagogas, das assembléias de privilegiados. São missionários itinerantes. (p. 35)
- Os evangelhos dividem o universo em que Jesus atuou em três categorias: os discípulos, as multidões e os adversários. Os discípulos são os que ouvem e entendem a palavra, como aprendizes, como futuros profetas. As multidões ouvem a palavrasem entendê-la. Os adversários são os falsos pastores. É nesse cenário profético que Jesus também atua como um profeta, sendo assim reconhecido pelo povo, por suas palavras e pelo seu comportamento. (p. 36)
  Nas palavras de Comblin, o conteúdo da mensagem dos profetas “sempre foi, é e será uma mensagem de libertação para os pobres, os perseguidos, os oprimidos.” Mensagem que eles anunciam, por palavras pronunciadas por humanos, portanto com seus condicionamentos, afinal quando Deus assume enviar seu Filho, encarnando-se na história, Ele assume também a humanidade com suas limitações. Donde não se deve retirar as palavras dos profetas do seu contexto, tomando-as como palavras saídas diretamente daboca de Deus. (p. 36)
-  Algo semelhante se dá em relação à figura de Jesus. Embora o credo de Calcedônia assuma Jesus em sua divindade e em sua humanidade, a tendência é a de atenuar sua humanidade, como se esta reduzisse a divindade de Jesus. E tal interpretação implica uma certa desfiguração da humanidade de Jesus, evitando um assumir pleno dessa condição, com muitas conseqüências de caráter fantasioso e idealista da figura de Jesus. Conforme Comblin, “o conteúdo que dão à humanidade de Cristo é aquém daquilo que realmente é humano.” (...) Entendemos que a fórmula de fé de Calcedônia significa que a divindade não prejudica a humanidade de Cristo, nem a humanidade prejudica sua divindade.” Contra tal tendência têm investido, a justo título, os teólogos latino-americanos (Juan L. Segundo, G. Gutiérrez) (p. 37)
- “Ora, o que é ser humano no sentido completo da palavra? Não é somente ser dotado de órgãos e faculdades: inteligência, vontade, sensibilidade, etc. A soma dessas faculdades não faz um ser humano vivo e ativo. O que faz um homem é um projeto de vida, uma obra imaginada por ele pacientemente prosseguida, com constância, inteligência e até teimosia” (p. 37)
  Isto implica entender melhor o modo como Jesus se fez obediente à vontade do Pai, sem perder sua identidade de homem, não se reduzindo a um objeto, a um papel carbono do Pai, mas cumprindo a vontade do Pai com os condicionamentos humanos. (p. 38)
- Os evangelhos contêm narrações importantes da vida de Jesus, às quais os exegetas antigos não deram atenção, por seu zelo de distinguir apenas sinais da divindade de Jesus, desligados de sua humanidade (p. 39)
  Interessante observar a diferença entre a mensagem pregada por João Batista e a pregada por Jesus. João Batista fazia questão de incluir os ricos e poderosos como alvo de seu apelo de conversão. Por sua vez, o anúncio de Jesus dirigia-se aos pobres, sem muita confiança na conversão dos ricos (ver, por ex., narrativa do banquete do rico e do pobre Lázaro.). (p. 39)
- João se surpreendeu com Jesus: esperava que ele retomasse o alvo predileto de sua pregação: pregar a conversão para os poderosos. Jesus tratou de aproximar-se dos pobres, lá onde eles se encontravam mais abandonados: na Galiléia, e onde encontrou condições mais favoráveis de ser escutado, sem o controle tão forte dos poderosos em lugares menos pobres. (p. 39)
- Ao realizar sua missão profética, o projeto de Jesus consiste, de um lado, em denunciar e desmascarar os falsos pastores, os chefes religiosos e políticos de seu tempo (fariseus, escribas, sacerdotes, anciãos), e, por outro, ir em busca dos pobres, das ovelhas perdidas, do Israel rejeitado, oferecendo-se como seu pastor (ver, por ex., João, cap. 10): “Então, o projeto de Jesus consiste em buscar as ovelhas perdidas, o verdadeiro Israel rejeitado pelos falsos pastores, e tomar ele próprio a liderança desse povo, emancipando-o dos falsos pastores. Refazer o verdadeiro Israel a partir dos pobres da Galiléia e libertá-lo do jugo dos seus dominadores, propondo-se a si próprio como único condutor,  ele com seus discípulos (Mt 9, 35-36; 11, 28-30; Lc 15). (p. 40)
- E quem eram essas ovelhas perdidas a quem Jesus dedicou sua missão? Eram os pobres, os famintos, os doentes, os leprosos, os perseguidos, os cegos, os aleijados... Ao mesmo tempo em que Jesus a eles se solidarizava, tratava de denunciar os responsáveis por tal situação, com o objetivo de destituí-los do seu poder e sobretudo de afastar sua influência sobre o povo dos pobres, constantemente enganado pelo discurso deles (p. 41)
  Na sua convivência com os pobres, as ovelhas perdidas (a que alude João, cap. 10), Jesus usava a força da palavra  palavra-gesto, isto é, associava ao seu anúncio sua prática, seu gesto de curar, de fazer o bem (inclusive expulsando o maligno). (p. 42).
- Esse núcleo da vida e da missão de Jesus foi sendo tirado, ao longo de séculos, de seu contexto. As palavras de Jesus foram sendo aplicadas ao gosto das circunstâncias, na perspectiva de uma elite, a ponto de sofrer até inversão... E o autor adverte: “Contudo, ainda mais importante é conhecer o plano geral das palavras de Jesus, em intenção e significado.” (...) “Através de palavras tão diversas ele sempre queria insistir na mesma mensagem. Disse sempre a mesma e única coisa. O quê? A sua mensagem aos pobres. A mensagem aos pobres é esta: o povo de Israel é dos pobres. Os pobres foram enganados e Israel foi corrompido, desviado da sua vocação. Agora Jesus abre o caminho para renovar e levar à sua verdadeira vocação o povo dos pobres. (...) A condição é romper com os falsos pastores e seguir a Jesus, tomá-lo como guia, tornar-se discípulo dele”  (p. 43)
- O projeto proposto por Jesus não tem garantia evidente de sucesso, também conheceu e conhece barreiras, decepções, fracassos. Mas sempre persiste teimosamente em um pequeno grupo de missionários que tratam de fazê-lo conhecido e seguido. Não sem enfrentar sérias dificuldades e limites. Limites de dois tipos: um por conta da alienação de que os pobres são vítimas, da parte de seus opressores; donde a importância de quem chegue perto para ajudá-los a despertar e a exercitar a consciência crítica; e limites dos próprios missionários, pelo desânimo, pelas infidelidades, pela descrença na capacidade dos pequenos, e até por não encontrarem o jeito próprio de anunciarem o Projeto de Jesus. (pp. (44-46)
- Como se dá, então, a recepção da Palavra? A Palavra provoca atitudes distintas nos ouvintes. Ela pode provocar dois tipos de divisões: uma divisão entre ricos e pobres, e outra entre verdadeiros e falsos pastores. As igrejas cristãs tendem a valorizar apenas adivisão de caráter religioso, enquanto na Bíblia, principalmente no Novo Testamento, o critério para distinguir os verdadeiros dos falsos adoradores de Deus vai sendo substituído pela relação entre pobres e ricos. (pp. 47-48)
- “Quem pertence ao verdadeiro Deus e quem pertence aos falsos deuses? Não são os critérios religiosos que vão determiná-lo, mas sim o fato da pobreza. No Novo Testamento já não há mais dúvida.” (...) “Tratando-se dos pobres, não importa que sejam bons ou maus. O evangelho não supõe nem afirma que os pobres sejam melhores do que os ricos. São eleitos simplesmente porque são pobres. A parábola de Lázaro e do rico (não se diz que seja um mau rico nem que Lázaro seja um bom pobre) ilustra perfeitamentea mensagem unânime do Novo Testamento. Os ricos precisam de conversão, os pobres não. Os pobres são herdeiros do reino de Deus, “maus e bons” (Mt 22, 10).” (p. 48)
- Não se trata de julgar o rico, em abstrato. Não há o rico em abstrato. É na relação rico-pobre que se deve exercer o discernimento, em meio a uma enorme diversidade de situações. (p. 49).
- Com relação à divisão pelo critério verdadeiros e falsos pastores, cabe ao missionário exercer o discernimento sempre com base no Evangelho, prestando atenção à atitude concreta dos pastores: os verdadeiros pastores não buscam tirar vantagem pessoal de sua missão, fazem gratuitamente seu trabalho, enquanto os falsos pastores tiram para si proveito material, de prestígio e de poder. (p. 50)
- Por se tratar de um critério abstrato, a defesa do critério dapredestinação induz, antes, a um certo descompromisso com acausa dos pobres, por favorecer a uma atitude isolada do mundo, uma relação intimista com Deus, e de distanciamento dos desafios do mundo concreto, em particular no que diz respeito à solidariedade com a causa dos pobres. (p. 51).
- A Palavra produz a fé. Esta nasce e desabrocha no campo dos pobres e dos missionários-profetas. A fé é testada e se fortalece nas lutas pela causa dos pobres e oprimidos. “Uma fé que não se formou na luta não é fé verdadeira.” (pp. 52-53).
- É nos desafios dessas lutas junto aos pobres que o missionário vai fortalecendo sua fé, à medida que também, por sua vez, vai ajudando a alimentar a fé dos pobres, em meio a toda sorte de barreiras, a começar pelas incertezas da caminhada, do enfrentamento das situações que desafiam a razão, parecendo completa loucura... (pp. 54-55)
- Os falsos pastores, falsos profetas são aqueles que distorcem o núcleo do evangelho, em proveito próprio ou de outros privilegiados, e usando para tanto a religião. No Evangelho o contrário de fé não é ateísmo, agnosticismo; é religião, usada como autojustificação dos próprios interesses e contra a causa dos pobres. “No centro da cultura dominante fica uma religião alienada que atribui a Deus a situação existente e buscam nele a razão de sua continuidade. Os falsos profetas não se opõem explicitamente à multidão dos pobres: ignoram-na.” (pp. 56, 57 e 58)
- E onde estão a força e a fraqueza da Palavra? Sua força reside em que Deus escolheu os pobres para, por meios pobres, transformar aobra da criação. Ação que se dá por meio da liberdade, que produz transformação. A Palavra vai fecundando culturas, sociedadades, movimentos. “Vive-se a fé neste mundo: ela não transforma o mundo diretamente. Tem que penetrar no seio da humanidade, das suas culturas, das suas sociedades, dentro dos seus movimentos e correntes”(,,,) “A penetração da fé no mundo produz uma sabedoria nova e esta transforma a sociedade,” (pp. 58-59)
- Isto se faz ao longo de séculos. Há quase 4.000 anos, o povo de Deus busca essa transformação. Os povos indígenas e africanos, já há cinco séculos, vivem essa luta, na América Latina. Pela fé é que seguem lutando, não desistem, todos os dias retomam sua luta. “.” (pp. 60-62),
- É a liberdade que assegura ao homem força para lutar e transformar a sociedade. Força que Deus lhe concede, e que o homem precisa assumir de forma autônoma e em mutirão: “O ser humano constrói-se no diálogo e na colaboração, na solidariedade com o seu próximo (isto é o mais remoto, o que está longe, que é o mais diferente) .” (p. 62).
- “A primeira expressão da liberdade é a fé. Com a  a pessoa constitui-se como sujeito histórico, começa a agir na história. Deixa de ser o reflexo da sociedade ou da cultura em que está mergulhada.” (...)”O cristianismo está fundado na convicção de que os homens são chamados à liberdade e, pela liberdade, ser sujeitos históricos.” (p. 63).
- “Os evangelhos mostram muito bem que Jesus venceu no mesmo momento em que estava vencido (Jo 16,33). Venceu como? Venceu pela sua fé. Qual foi o efeito de sua fé? A sua ressurreição. A sua fé foi tão forte que o ressuscitou. Não pela virtude humana de uma fé humana, e sim pela força do Espírito.” (p. 64)
- É pela busca constante de agir com sabedoria que os homens vão buscando transformar o mundo, mas a partir de si próprios, passando assim a ser também agentes de mudança do mundo, dasociedade. (p. 65)
- Em textos do Antigo Testamento, encontram-se várias narrativas que misturam expressões da sabedoria humana (ligada às camadas privilegiadas) com a sabedoria que procede do Espírito (aexpressar a vida dos pobres). Pelo fato de o ofício de escrever ser um privilégios de poucos daquela época, muita coisa escrita expressa, antes, o olhar de categorias privilegiadas. Mesmo em textos paulinos, é possível notar diferença entre as primeiras partes dos textos de Paulo (onde aparece mais fortemente seu carisma de evangelizador) e as segundas partes de suas epístolas (onde aparecea sabedoria humana de Paulo , como nas suas posições sobre o papel da mulher na sociedade e na igreja). Paulo é bem mais brilhante como evangelizador! (pp. 65-66).
- Ocorre uma certa tensão, ao se buscar distinguir, em cada época, conciliar concretamente o que é vontade de Deus e o que é capricho humano, ao tempo em que parece salutar manter-nos humildes a ponto de saber acatar os limites históricos de cada tempo. Não dá para se exigir uma atitude de completa ruptura, na época de Paulo, com os valores então hegemônicos. (pp. 66-67)
- A Palavra age na história e produz efeito. Mas, vem misturada aoutros fatores históricos, razão por que não se pode medir nem precisar esse efeito. Basta que saibamos que a Palavra produz efeitos, sim, na história, e isto nos convida a lutar. Por vezes, há atendência em se superestimar a força histórica dos pobres, principalmente em épocas de maior efervescência revolucionária, do que pode decorrer, inclusive, benefício das forças que controlam o processo revolucionário, para depois destituir os pobres de sua condição de protagonistas. (p. 67-68).

Capítulo II: A PALAVRA DE DES E O DESAFIO DO HELENISMO

            Da página 69 à 120, o Autor reflete sobre se deu o confronto entre a Palavra de Deus e a cultura helenística que se enraizaria no conjunto das igrejas cristãs, de modo tão enraizado, que perduraria por cerca de vinte séculos. No caso da Igreja Católica, até o Concílio Vaticano II. E, mesmo assim, com um relevante detalhe: o Concílio Vaticano II ainda não foi cumprido, a não ser em parte. (p. 69)
            Durante seu percurso histórico, a Igreja enfrentou, além do desafio do Helenismo, ainda outros: o confronto com as religiões orientais - diálogo que a Igreja simplesmente não aceitou – e o desafio da Modernidade. Mas, profundo e prolongado tem sida a influência resultante do confronto entre a Palavra de Deus e o Helenismo, com fortes desdobramentos no pensamento, na teologia, na exegese, nas tradições orais e nos escritos. (p. 69)

RESUMO DO CAPÍTULO II

COMBLIN, José. “A Palavra de Deus e o desafio do helenismo”. In:
COMBLIN, José. A Força da Palavra. Petrópolis: Vozes, 1986, cap. II, pp. 69-120)

RESUMO


O cap. II de A Força da Palavra intitula-se “A palavra de Deus e o desafio do helenismo”, e se estende da p. 69 à p. 120. O autor distribui sua reflexão em três momentos: inicialmente, trata de definir o sentido do helenismo (pp. 71 a 84); em seguida, cuida de examinar como se dá a resistência da Igreja à poderosa força da cultura helenística (pp. 84 a 95; por fim, destaca a cristianização do helenismo (pp. 95 a 120).
- Ao mencionar três grandes desafios historicamente colocados à Igreja – o da civilização helenística, o das religiões orientais (que as igrejas cristãs se têm recusado a enfentar) e o da modernidade (que somente foi enfrentado pelo Concílio Vaticano II, que não foi aceito totalmente pela Igreja católica), o autor se concentra no primeiro. (p. 69).
- O longo confronto (de dois mil anos!) da Igreja com o mundo helenístico requer uma atenção cuidadosa a numerosos trabalhos sobre o tema elaborados, em vários países, tendo em vista que tal confronto tem suscitado amplas e profundas implicações: na tradição, na teologia, na liturgia, no catolicismo popular, nas distintas instituições. (p. 69),
- Por outro lado, o autor sublinha um aspecto deveras auspicioso: a constatação de que tal influência tão poderosa do helenismo sobre a trajetória das igrejas cristãs constitui apenas uma forma de inculturação. Outras são possíveis e necessárias, tendo em vista que“os escritos e as tradições orais, a teologia e a religião popular constituem, entre outras, apenas uma forma, uma inculturação do cristianismo. Há tantas inculturações possíveis quantas culturas. (...) Se tivéssemos aceito o confronto com a cultura da China ou da Índia no século XVII, teríamos outras teologias. Se aceitamos o confronto com a modernidade, teremos outra teologia” (p. 70)

- A teologia que temos procede da ampla influência dos Santos Padres dos séculos IV e V, que a elaboraram a partir da inculturação no mundo helenístico. Eles seguirão tendo um grande respeito através dos tempos. “Porém, eles não são os Santos “Padres” das Igrejas a serem fundadas no seio de outras culturas. Outros Santos Padres serão necessários em outros mundos.” (p. 70).

- O contexto histórico-cultural da Igreja da América Latina, sob o clima de Medellín e Puebla, dá sinais de novas possibilidades de inculturação, inclusive com o possível surgimento de novos Santos Padres, a enfrentarem novos desafios, distintos dos enfrentados pelas igrejas cristãs em seu confronto com o mundo helenístico. Importa recuperar a tradição cristã anterior ao helenismo, e ousar enfrentar os novos desafios, com outro tipo de inculturação, com outro tipo de teologia: “Face a novos desafios a palavra de Deus tomará expressões muito mais novas, muito diferentes de tudo o que conhecemos até agora, de tudo que podemos imaginar. Muitas vezes não passa de uma figura histórica o que se considera mensagem cristã. Com isso a mensagem fica reduzida a um único aspecto.”. (p. 70)

- Trata, a seguir, o autor, de evocar traços históricos da experiência de enfrentamento das igrejas cristãs com o helenismo, em busca de examinar como, quando e de que forma se deu a presença do Espírito Santo nessa experiência: “o que foi do Espírito? O que não foi, mas procedeu do helenismo?” (p. 70).

- Valendo-se de autores como o teólogo ortoxo russo Jean Meyendorff (1926-1992), uma referência nas pesquisas sobre a teologia oriental, Comblin sublinha uma das primeiras grandes conseqüências da poderosa influência helenística sobre a tradição cristã: o deslocamento para a elaboração teológica da herança cristã, e bem conforme as categorias do pensamento helenístico: “Quem examina, por exemplo, as doutrinas e as catequeses dos primeiros missionários que evangelizaram a América Latina, fica espantado ao perceber a dependência total dos evangelizadores para com a teologia escolástica.” (p. 71).

- Tanto a teologia quanto a importância que lhe foi atribuída são expressão e resultado do processo de cristianização do helenismo, como Comblin segue mostrando seja por meio da ação dos seus portadores como por meio do conteúdo assumido. (p. 72).

- Já na origem da diáspora de Alexandria, havia uma certa tendência em alguns grupos, a exemplo do liderado por Fílon, de se fazer concessões à cultura helenística, talvez visando a atrair adeptos para o cristianismo. Mesmo uma parte do Novo Testamento foi escrita visando o mundo grego, mesmo não havendo indícios de que Jesus tenha empreendido diálogo com o mundo helenístico, Tal chegou a ser o impacto da cultura helenística sobre o cristianismo, que o autor chega a afirmar, com base em estudos de especialistas, que “Houve uma época em que a Igreja patrística foi acusada de haver desfigurado o autêntico cristianismo, substituindo-o por uma construção mais helenística do que cristã. (...) Não há indícios claros de que Jesus tenha sido influenciado pelo judaísmo alexandrino, helenizado. (...) Mt e Mc, assim como a fonte Q, também não manifestam sinais de influência evidente do helenismo. Houve um cristianismo primitivo, um judeu-cristianismo praticamente isento de helenismo, o que é importante para nós porque nos permite um certo recuo histórico e ajuda a desprender o cristianismo do invólucro grego.” (pp. 72-73).

- O fato é que, desde a origem, os contatos do cristianismo com a civilização helenística constituíram um grade desafio. Várias epístolas de Paulo indicam seu empenho em dialogar com a cultura helenística, sem desfigurar o núcleo da mensagem cristã. Nesse sentido, teve que enfrentar tendências à esquerda (os que queriam ir com muita sede ao pote grego) e à direita (a dos judaizantes). E o caminho que encontrou para dialogar com o mundo grego, sem perder a identidade da mensagem cristã, foi o de guardar o núcleo fundamental da mensagem evangélica: o evangelho da cruz: “A cruz não é o fato material da crucifixão de Jesus. A cruz é a vida de Jesus na pobreza, na opção pelo pobre, pelo humilhado, na rejeição das grandezas humanas, dos poderes humanos. A cruz é um certo estilo de vida das comunidades. É a encarnação de Jesus, a encarnação do Filho de Deus em toda a sua materialidade, em todo o seu realismo; é a participação na condição dos homens comuns. A cruz é também a exclusão de todos os meios inventados pelas culturas humanas como caminhos decisivos de salvação.” (p. 74).

- Alerta em relação a esse núcleo identitário da mensagem cristã, segue Paulo em seu diálogo com o mundo grego, aberto a acolher também elementos de sua cultura. No caso, Paulo vai apreciar um certo humanismo grego, que lograra superar velhos preconceitos (em relação à completa dependência dos seres humanos às forças da natureza). Para tanto, trata de propor uma categoria emblemática, a de homem novo, fundado na proposta de povo de Deus, o novo Israel. Nisso, Paulo estava propondo algo novo e, ao mesmo tempo, pondo-se em continuidade com a tradição véterotestamentária de povo de Deus, agora renovado em e por Jesus: “A adoção da perspectiva humanista ou antropológica permite a Paulo salientar outros aspectos da primazia de Cristo: Jesus reúne e recapitula em si, em torno a si, todo o povo de todas as nações. Para não desencarnar a Jesus, Paulo põe como centro de sua cristologia a cruz de Cristo. (...) O dia-a-dia das comunidades concretas é a garantia do caráter concreto de Cristo. Jesus não voou para as entidades celestiais, não se sublimou num ser desencarnado” (p. 75).

- O autor também interpreta como um certo reducionismo de Paulo o fato de – diferentemente do que descrevem os sinóticos quanto à atitude profética de Jesus frente aos falsos pastores – apontar para uma superação das desigualdades sociais, sem atentar para os conflitos que isto suscita. Além disso, a ação de Paulo volta-se quase exclusivamente para o mundo eclesial. Atitude que o autor explica pela hipótese dos limites históricos conjunturais: ainda não havia chegado a hora de dizer tudo. Daí também o autor concluir que Paulo não dá a última palavra sobre isto. (p. 76).

- A possível despolitização de Paulo, em seu tempo, é alterada, algum tempo depois. Santo Agostinho, de modo a focar, em suas interpretações da cidade do homem, mais o pecado do que a força da Ressurreição. A partir de Constatino, os teólogos da época tratam de politizar a leitura cristã, só que para justificar a cristandade: “Na cristandade o cristianismo passou para a política até o extremo. Passou de um extremo para o outro.” (p. 76).

- Outro texto neotestamentário que revela notável influência grega, é o evangelho de João. Avaliação muito fortemente feita em autores de outros tempos, enquanto menos em relação à exegese dos autores contemporâneos. Ao apresentar a Jesus, como um ser preexistente ao tempo histórico, o autor põe ênfase na dimensão divina de Jesus, para o que a fé bastaria, em seu sentido meramente místico, sem referencia à prática. Esta linha é amenizada pelo autor da primeira Carta de João, que indica uma relação mais íntima entre vida e justiça, entre salvação e a sorte dos pequenos, alertando para o fato de que sem as obras a fé inexiste. (pp. 78-79).

- A despeito dessa influência do mundo helenístico, desde as origens do cristianismo, tal diálogo não comprometeu o núcleo da tradição cristã. Risco real representou o desafio do encontro com os filósofos, à medida que se criou uma disputa entre cristãos e filósofos, atrevendo-se os primeiros a se tornarem mais filósofos do que cristãos, em algumas formulações. Disputa que decorria do lugar privilegiado atribuído à educação – então considerada a meta mais alta da filosofia - tanto por filósofos e cristãos. Os dois lados empenhavam-se em investir na educação, a serviço do filosofar. Ora, a vida levada pelos filósofos era muito distante da que levava o homem comum. Distante das necessidades do dia-a-dia. Ocupavam-se quase só de suas atividades intelectuais. Também os poucos cristãos que preferiram esse caminho tendiam a afastar-se do povo dos pobres, em seu dia-a-dia, contentando-se em entreter-se com refinados exercícios  mentais, tendendo ao individualismo e ao afastamento do núcleo da proposta central do Evangelho. (pp. 80-81).

- A principal herança recolhida pela cristandade da civilização helenística, foi a constituição de uma classe: a dos teólogos, pela via da imitação da filosofia. Herança extremamente duradoura: mais de dois mil anos. Apesar de terem sido pouquíssimos entre os cristãos as figuras de filósofos, sobretudo na antiguidade, eles deixaram uma semente poderosa: a formação da classe dos teólogos. Assim como os filósofos, os teólogos vivem da contemplação, da atividade intelectualista, sem compromisso com a salvação da humanidade. Até que podiam conhecer de história, mas não ousavam dela ocupar-se. (pp. 81-82).

- Um fato ilustra bem as contradições entre os cristãos e os representantes da ideologia da ordem do Império romano: a controvérsia entre as figuras de Celso e de Orígenes. O primeiro, um filósofo defensor intransigente da ordem estabelecida e da paz imperial. Orígenes, por sua vez, representava o mundo dos cristãos, formado fundamentalmente pelos pobres, pelos escravos e marginalizados que, diferentemente de Celso, não tinham motivo para defender a ordem imperial. Muito pelo contrário. Mas, como não haviam desenvolvido uma teologia política (nem disso também se ocupou Orígenes), toleravam aquela ordem como um fato. Orígenes chega até a esboçar um esforço de contribuição dos cristãos àquela ordem. Ao surgir o período de Constatino, logo vão aparecer teólogos que se consagrarão a uma elaboração de uma teologia política, de legitimação da ordem imperial... No segundo tópico deste capítulo, cuida o autor de examinar a capacidade de resistência oferecida pelos pobres à influência dos filósofos elitistas, defensores da ordem imperial. (pp. 83-84).

- Há um movimento de mão dupla entre a mensagem e os portadores: a mensagem faz os portadores, mas, na maior parte das vezes, estes é que acabam fazendo a mensagem, à sua imagem e semelhança. No caso específico, o autor se refere aos pobres como os principais portadores do Evangelho, os evangelizadores no contexto do Império romano. O Império Romano foi fundamntalmente evangelizado pelo protagonismo dos pobres: escravos, marginalizados, jovens, até crianças. A ponto de o filósofo Celso ridicularizar os cristãos, que se deixam (in)formar pelos “de baixo” (escravos, até por ciranças...): o que se pode esperar dessa gente? “A evangelização se deu no seio do mundo romano e fez surgir a palavra nova: a palavra dos pobres. De modo geral os pobres comunicam entre si os subprodutos da cultura dominante. Nesse momento os pobres sentem-se depositários de uma palavra que, segundo eles, vai mudar o mundo.” (p. 86).

- Tratou-se de um tempo – o que precedeu o período constantiniano – de um singular protagonismo de evangelização pelos pobres. Tempo em que eles pronunciaram amplamente a a palavra de Deus, que eles fizeram sua, inclusive por meio do martírio, ocasião muito bem aproveitada para evangelizarem pela palavra, o que é atestado pelas atas dos martirológios. Nesse tempo, não se nascia cristão. Tornava-se cristão. Tempo de intensa atividade evangelizadora no seio do Império Romano. Cenário que mudaria profundamente, a partir da “conversão” do Império Romano ao cristianismo, tornado este religião oficial do Império: “Com a conversão do império acabou a cultura paralela. O evangelho cristão passou da semiclandestinidade e passou a ser doutrina oficial do império.”  (p. 87).

- Mesmo assim, apesar de todas essas condicionantes históricas, a evangelização tinha lugar assegurado na ação missionária dos pobres, dos que viviam no anonimato, à margem das elites imperiais, que agora passaram a contar com a contribuição de figuras de teólogos, dos monges e dos letrados, como ideólogos do Império: “Contudo, a nível das massas populares (...) sempre houve uma sucessão de evangelizadores populares. Houve, como ainda há, pessoas simples, humildes e pobres que transmitiram à geração seguinte o essencial da mensagem cristã. O cristianismo real que formou a verdadeira tradição da igreja dos pobres transmitiu-se por vias quase subterrâneas pela palavra simples de evangelizadores simples.” (p. 87)

- Outro tipo de portadores da missão de evangelização foram os monges, no Oriente e no Ocidente. Diferentemente dos portadores leigos, os monges levavam uma vida reservada. Isto também os condicionava a entender a vida cristã conforme seu róprio modo de vida; bem como a vocação cristã como sua própria vocação. Mesmo assim, os monges foram os portadores da evangelização, no seio do Império romano. Resistiram tenazmente à influência da filosofia grega, tanto no Oriente quanto no Ocidente. Enquanto aqui, a oposição se dava por conta da centralidade que a filosofia grega concedia ao intelectualiismo, no Oriente, a oposição foi ainda maior, pelo fatode que a filosofia se revelava ainda mais atrativa para o mundo dos intelectuais, por ir além de um gosto especial pelo exercício intelectual, chegando a constituir mesmo um estilo de vida bem distinto da proposta cristã, muito afeita à vida cotidiana de simplicidade e de coisas frugais.  (pp. 88-90).

- No segundo tópico deste capítulo, o autor volta-se a examinar o conteúdo da mensagem difundida por esses dois tipos de portadores: os pobres (ou seja, os leigos) e os monges. Em relação aos primeiros, tratava-se de um conteúdo expresso, não tanto ao modo de um discurso elaborado, mas por meio de suas práticas cotidianas, de suas obras as mais simples de uma fraternidade ativa. Um documento (coisa rara: os pobres dificilmente deixam registros escritos dos seus feitos) capaz de revelar traços disto é a “Carta a Diagneto”, do qual consta como elemento decisivo a superioridade intelectual e moral da proposta cristã, em relação à crença ilusória nos ídolos e ao conformismo diante valores dominantes. (pp. 91-93).

- No que toca ao conteúdo da mensagem transmitida pelos monges, o autor a resume em três elementos característicos, cuja aplicação salvou os monges da tentação de sucumbir às sedutoras formulações filosóficas do helenismo: a ênfase numa espiritualidade fundada no coração, e não no intelectualismo; o caminhar junto com os pobres; e a caridade prática, manifesta na insistência nas virtudes comunitárias e na prioridade do agir fraterno. (pp. 94-95).

- No terceiro e último item do cap. II (pp. 95-120), o autor nos oferece uma espécie de balanço sobre o que terá prevalecido do diálogo entre o Cristianismo e a civilização helenística, nos primeiros séculos da cristandade.

- Ao ensaiar tal balanço, o autor considera ter havido tanto uma helenização do cristianismo como uma cristianização do helenismo, e toma o cuidado de quem não está à procura de um suposto cristianismo puro – que não existe, até mesmo pela escolha feita pelo Filho de Deus em incarnar-se numa cultura, Seu propósito consiste em examinar o alcance histórico de 1600 anos de influência do helenismo na trajetória da Igreja, até o presente, anda que o atual contexto (a exemplo do quadro latino-americano) brade por outras cscolhas, por outros critérios que se acham bem presentes na Sagrada Escritura e nas tradições anteriores à helenização do cristianismo, têm sido sistematicamente preteridas, em detrimento do povo dos pobres, e em favor de uma classe de intelectuais que controlam  a elaboração da teologia, e por meio dela, o processo de formação e tantas outras áreas decisivas na trajetória da Igreja: “O que procuramos saber é o que o cristianismo atual, no discurso e nas palavras cristãs de hoje, deve ao helenismo e está destinado a ser substituído por outros temas, outras escolhas, outras orientações ou acentuações.” (p. 96).

- A absorção do helenismo pela teologia implicou uma forte tendência de caráter essencialista, tendência ao nominalismo, à avidez por definições e fórmulas, graças à tendência do helenismo a privilegiar o que é estático ou partir de uma realidade estática, em prejuízo do movimento. Isto também afetaria critérios de escolhas, de temas a priorizar nos concílios, onde predominou o acento sobre as heresias, tão ao gosto dos intelectuais e distantes das preocupações do mundo do povo dos pobres. “Durante séculos, os cristãos sabiam quem era Jesus e o que era, mas não precisaram dizê-lo em fórmulas gravadas e fixadas.” (p. 96). A forte influência helenística condiciona o nascimento de uma teologia clássica, afeita a fórmulas e definições dogmáticas, tendo desenvolvido, em relação à Bíblia, uma curiosidade seletiva, prestando-se a produção teológica dominante a apenas explicar tais fórmulas, deixando de lado desafios enormes vividos pelo povo dos pobres: “Da Bíblia e da tradição cristã escolheram-se apenas alguns aspectos. Daí a dogmática tradicional que trata apenas de alguns pontos do cristianismo, os que interessam mais aos intelectuais, não necessariamente ao povo cristão.” (p. 97).

- Com a ressalva em relação ao que chama de classe intelectual, aí entendendo o clero católico e reformado, o autor reconhece a singularidade do caso, uma vez que se trata de expressão que não aplicaria a outros segmentos de sacerdotes, de gurus, de mandarins de outros povos. No caso específico das igrejas cristãs, entende que uma das heranças duradouras da poderosa influência do helenismo sobre o cristianismo reside na formação de um clero que tem age como uma classe, como uma elite intelectual que define as decisões do conjunto do povo cristão, dentro das respectivas denomnações. (pp. 97-98)

- Tem raízes no helenismo o processo de formação e desenvolvimento de um clero como uma classe de intelctuais, a quem tem cabido o controle da palavra e do discurso cristão. Em outro plano, a classe de intelectuais destaca-se por sua função crítica, pela sua capacidade de questionamento da realidade estabelecida. No caso da classe clerical, sua unidade se define sobretudo pelo seu controle da teologia. Nem todos os membrosdo clero participam igualmente desse controle. Aí também há uma hierarquia: há uma minoria que produz e publica tal conhecimento, e há a maioria que participa na circulação e na difusão. (pp. 99-100).

- Tal processo de formação se deu, sobretudo, no Ocidente, uma vez que na Igreja do Oriente, vigeu uma certa desconfiança em relação à filosofia. Os monges aí entendiam que a melhor filosofia é a que se aprendia na vida monástica. Mesmo assim, houve ensaios com São Justino e, sobretudo, com Orígenes, na chamada Escola de Alexandria, com uma atuação limitada no tempo. Diferentemente, no Ocidente, graças ao desenvolvimento da escolástica, o terreno foi muito mais fértil, na formação e desenvolvimento do clero como uma classe de intelectuais. (p. 101).

- O estilo monástico não se prestou como ambiente propício ao desenvolvimento dessa classe. Desconfiados do mundo da filosofia, preferiram aprimorar um caminho de espiritualidade, de ascensão pessoal a Deus. Não era seu propósito investir na função intelectual, enquanto instrumento para uma sistematização teórica do mundo e da sociedade. Levavam um estilo mais do tipo profético, um tanto separados da sociedade e da Igreja, sem com esta romper. Houve vários monges ordenados bispos. Mas, não era a regra. Isto não significa que não tenham contribuído para os estudos, inclusive na criação de universidades. Tendência que implicou no início da formação de uma classe de intelectuais, à medida que foi aumentando o fosso entre a parte letrada do clero (dedicada às atividades intelectuais) e a parte iletrada ou semiletrada (dedicada às atividades materiais). Tendência ainda mais fortalecida com a política da Cúria de ordenação sacerdotal: “Com a imposição de uma formação intelectual idêntica no clero secular e regular a partir dos decretos do Concílio de Trento sobre a formação sacerdotal, a homogeneização cresceu. Doravante a Igreja católica ia ter um clero unido que seria uma verdadeira classe intelectual.” (pp. 103-104).

- Estratégia que não se restringiria à Igreja católica. As igrejas reformadas não mudariam substancialmente o modelo. Modelo que se baseia, primeiro, no processo de formação, homogeneizado pelo linguajar teológico. Ministros até podiam esquecer u desconhecer os conteúdos disciplinares, mas não podiam abrir mão do linguajar teológico, disitintivo de sua posição social: “O que se espera de um sacerdote é que conheça as palavras da escolástica, não que entenda ou possa exprimir a compreensão do pensamento tomista.” (p. 104).

- A teologia dominante pretende-se um conhecimento acabado, não um processo, uma enciclopédia-modelo para os demais conhecimentos humanos e sociais. Até do evangelho pretende ser uma explicação, embora sejam consideráveis as diferenças entre o Evangelho anunciado nos primeiros séculos e o proclamado com invólucro helenístico. Antes, eram os pobres e os leigos que evangelizavam, e tinham consciência de sua missão. Com a influência helenística, estes começam a perder essa condição, assumida pelos monges. Os monges orientais passaram a ser o segmento evangelizador, por meio de sua vida. Mas, com a institucionalização da classe intelectuaizada, por meio do processo de formação e da teologia escolástica, os pobres e os leigos ficam afastados e perdem sua consciência missionária de evangelizadores. Isto vem a ser bem ilustrado no caso dos missionários, inclusive os jesuítas, que vêm atuar na América Ltina, no processo de colonização. Tanto é verdade, que após a expulsão dos jesuítas, os índios não tiveram como ser protagonistas da evangelização. Não tinham sido formados para isso. (pp. 105-106),

- É assim que se foi consolidando uma separação na Igreja entre os que têm acesso à teologia escolástica, os seja o clero intelectualizado, e o povo dos pobres e leigos, feitos meros ouvintes e propagadores do clero. O que era feito em nome do Evangelho, quando o que era ensinado – inclusive na catequese – era menos o Evangelho e mais as fórmulas escolásticas. Foram consolidadas, inclusive nas Ordens religiosas,  duas categorias: a dos que tinham acesso ao conhecimento teológico e a dos que tinham um conhecimento infrateológico (os pobres e os leigos). (p. 107).

- Quais teriam sido, em breve, as opções helenísticas que se fariam herança da teologia, especialmente em sua versão oriental? O autor destaca três opções temáticas daí resultantes: a procura de Deus, a idéia de deificação e a concepção da verdade. (pp. 108-117). Na primeira opção, por meio de Clemente de Alexandria, mas sobretudo por intermédio das formulações de Orígenes e Evágrio, a busca de Deus priorizaria o recurso aos exercícios intelectuais. Atividade intelectual do tipo idealista que se afastaria do anúncio feito por Jesus, em sua vida, de Seu Pai. Não se trata de seguir as vias intelectuais para um estilo filosófico de viver, mas antes se funda na atitude concreta em relação aos obres e humilhados. Uma segunda opção helenística destacada foi a idéia de deificação: A terceira e última característica destacada pelo autor à herança da teologia oriental a partir de categorias gregas, foi o conceito de deificação. Conceito que se revela bem ao estilo de vida monástica, de divinização do ser humano, por meio da prática ascética, da consideração do corpo como instrumento passivo, sob o controle cerrado do intelecto, assumindo uma rígida pobreza voluntária. O autor avalia como uma atitude ousada dos monges orientais, à medida que, não tendo sua opção amparo explícito nos sinóticos, em Paulo e mesmo em João, os monges orientais atrevem-se a servir-se de conceitos gregos para uma extraordinária construção que bem se adéqua ao seu estilo de vida. Sob esse ponto, uma lição para os cristãos de outros contextos históricos. Reconhece, todavia, limites na opção dos monges bizantinos: não tomam em consideração a multidão de pobres involuntários e de leigos que levam outro estilo de vida bem diferente do estilo monástico. (pp. 111-115).

- Uma terceira marca da experiência helenística da Igreja do Oriente, tem a ver com a concepção de verdade. Enquanto o conceito bíblico – inclusive neotestamentário – de verdade aponta para a realização de Deus na história, para a ação de Jesus, Ele próprio definido como a verdade, o entendimento da cristandade (no Oriente e no Ocidente) punha o acento numa concepção de verdade como o conhecimento da essência das coisas eternas, acima do alcance do sensível. Daí resultante uma inversão de sentidos: de um entendimento de verdade como algo inerente da realidade concreta, passa, na perspectiva helenística herdada pela cristandade, como sendo algo da alçada do mundo das idéias: “Proclamar a verdade sobre Jesus foi proclamar sua essência eterna, enunciar atributos universais, eternos, ideais. A verdade sobre Jesus consistiu em descobrir sua divindade em cada palavra dos evangelhos. A sua humanidade deixou de ser objeto da verdade.” (p. 117).

- Como conclusão do capítulo II, o autor avalia como incalculável a influência do helenismo sobre a cristandade, mais no Ocidente do que no Oriente. Como fatores explicativos, salienta o nascimento de uma divisão no interior do cristianismo de duas classes: uma classe intelectualizada, a dos letrados (o clero) e outra, composta pelos iletrados ou semiletrados, os pobres e os leigos. Isto se deu por meio da criação de um sistema de poder, baseado na teologia inspirada nos conceitos e valores helenísticos. Isto também dá origem a dois tipos de linguajar: o dos letrados, incompreendido pelos não letrados, pelos pobres e pelos leigos; e o linguajar dos pobres que vivem à margem do sistema eclesiástico, mantido submisso e passivo, por meio de uma cera infantilização dos cristãos, o que pode estar na origem, pelo menos em parte, do processo de secularização, dada a revolta dos leigos em seguirem sendo tratados como infantis. (pp. 117-120).

CAPÍTULO III: A Palavra e a Cristandade (pp. 121-172)

Durante o regime de Cristandade (que se estende por séculos, desde o período constantiniano até bem recentemente, embora alguns sustentem que ela se estendeu até à Reforma, mas o autor considera que a Reforma não foi capaz de romper com a estrutura social da Cristandade, só com a estrutura eclesiástica ), a Palavra de Deus sofreu profundas modificações, a ponto de muitos já não reconhecerem nela o teor do Evangelho. Por conta desse distanciamento, houve muita resistência a esse regime, sobretudo por ocasião da Reforma Protestante e da Revolução Francesa. (p. 121)

Isto não quer dizer que a Palavra aí não se fizesse de todo presente. Ela estava presente nas vozes e nos gestos de resistência, em especial nos movimentos pauperísticos da Idade Média. Durante esse período de Cristandade, vigoraram três discursos – correspondendo às três classes vigentes, nessa época - acerca da Palavra: um identificado com as elites dirigentes (a nobreza, a burguesia); um segundo relativo às massas camponesas, e um terceiro mais afinado com o clero (monástico e secular).  (p. 122)

Desses três discursos, resultará ainda um quarto, de caráter integrativo, mais conforme à feição da classe intelectual da hierarquia controladora maior da Cristandade. Esse papel sintetizador dos discursos da Cristandade foi exercido, primeiro, pelas Abadias de Cluny e Citeaux e pelas grandes universidades européias (Oxford, Bolonha, Louvaina, Salamanca), e depois pela Cúria e pelas grandes Ordens Religiosas – Franciscanos, Dominicanos, Jesuítas... (123).

O impacto da Cristandade nos povos vai depender de sua maior ou menor aproximação com os valores da Reforma: na Alemanha, na Escandinávia, na Inglaterra, dão-se passos de maior ruptura. De modo similar, também na Bélgica, na Holanda, em algumas colônias da América do Norte. Bem diferente é a situação da América Latina, de uma forte cultura camponesa, onde o regime de Cristandade deitou raízes mais fundas. (p. 124).


A Cristandade se expandiu graças a distintos discursos “missionários”: um mais voltado para a elite dirigente (nobreza e, depois, burguesia); outro destinado às às massas camponesas; e um terceiro concernente ao clero (monástico e secular). Desses três discuros resulta a necessidade de integrá-los por meio de um quarto discurso, o das organizações eclesiásticas mais intelectuais. (p. 124)

1. O discurso missionário em relação à elite dirigente – Tendo em vista a convicção de que os povos se converteriam por influência de seus chefes, tratava-se de seguir os valores que mais e melhor pudessem sensibilizar os segmentos dirigentes (reis, imperadores, chefes militares). Importava justificar a recompensa por sua conversão à Cristandade: assegurar a recompensa das vitórias, das conquistas, que esse Deus iria assegurar àqueles que se convertessem à Cristandade, só vitórias lhes seriam oferecidas. Convertidos imperadores e reis como Constantino, Clóvis e outros, estes arrastariam consigo seus súditos, mesmo que estes não tivessem consciência de sua conversão. Daí por diante, diferente da conhecida afirmação de Tertuliano, de que “não se nasce cristão, torna-se”, bastava ter nascido e logo se batizava e passaria a ser cristão por toda a vida, ainda que sem consciência de tal identidade. (p. 125).

Foi assim firmando-se a Cristandade, recorrendo-se a uma estratégia específica: a da conversão dos reis como caminho para atrair povos inteiros à Cristandade. E o método era o do convencimento dos reis pela força do poder dos sinais: os reis eram convencidos à conversão graças ao uso e abuso de sinais maravilhosos, sobretudo o sinal da vitória. Os reis se convertiam graças ao argumento de que, aderindo ao Cristianismo, vitórias lhes seriam asseguradas, pois “Christus vincit, Christus regnat, Christus imperat”. Quem não estivesse de acordo, devia ser combatido como idólatra... Além da vitória como paga por sua conversão, os reis ainda tinham a vantagem de terem legitimado seu poder diante de todo um povo. Enquanto se acreditava que os reis cristãos gozavam do privilégio da eleição de Deus – eram tratados como os apóstolos da Cristandade -, aos povos se pregava e se exigia obediência, como condição do cumprimento da vontade de Deus. (pp. 126-128).

O mesmo argumento da idolatria seria usado e abusado no processo de colonização dos povos da América. A estratégia de conversão só valia para os reis da Europa. Aos reis Incas e Astecas já não valia o argumento. Foram tratados como idólatras, e como tal exterminados, em grandes proporçõses, com os seus respectivos povos. A tese da idolatria era tão poderosa, que uma pequena minoria de missionários de espírito evangélico, e que se contrapunham à escravização dos povos indígenas, tinham dificuldade fazer valer sua resistência, a não ser em pequenas áreas. Com efeito, o que prevalecia era a teoria segundo a qual, se a fé não podia ser imposta, mas a idolatria deveria ser destrulída, e, em função dessa interpretação, nas Américas, “os templos foram destruídos, os sacerdotes massacrados, os livros queimados, os ritos proibidos e todos os indígenas forçados a abandonar qualquer prática das suas religiões tradicionais, tratadas como idolatria.”(p.128-129).

Uma das consequências é que, mesmo no caso de figuras proféticas, como Lascasas, deferentemente da estratégia de conversão aplicada à elite europeia, no caso da evangelização dos indígenas, esta já não se deu com as elites – completamente exterminadas -, mas com as bases, e por vias oblíquas... (p 30).

Do ponto de vista avaliativo, o autor entende que pouco de Evangelho se teve nesse processo de conversão, pela via do monoteísmo característico das grandes religiões-culturas, em que se aplicou o monopolismo político, uniformizador. De todos os modos, essas mesmas grandes religiões-culturas (Judaísmo, Cristianismo, Islamismo e outras orientais) cumpriram um papel político de assegurar uma certa unidade desses povos. O Evangelho, apesar de tudo, não esteve de todo ausente. Essas grandes religiões monoteístas cumpriram um papel histórico, foram úteis aos seus respectivos povos, por permitirem uma certa unidade política e cultural, foi a forma que encontraram para viabilizar o progresso ao seu alcance. (pp. 131-132).
No que diz respeito ao discurso de conversão dirigido às massas, é outra a estratégia. Sabia-se que as massas não seguem cegamente as orientações das elites, daí a necessidade de adapata-se a linguagem voltada à conversão das massas, buscando fundamentar esse processo por meio de alguma motivação especial. Aqui se trabalhou tanto com uma sensibilização baseada para uma promessa de um futuro maravilhoso, como por meio de, em vez de destruir templos e símbolos, cuidava-se de substituir imagens, cultos e ícones próprios do povos indígenas por símbolos cristãos. Importava colocar sobre as imagens e símbolos dos “ídolos” os santos de Igreja, como aconteceu em vários lugares, como é o caso da Virgem de Guadalupe, cuja simbologia vai substituir as dos “ídolos”. (pp. 132-133),

O discurso destinado às massas fundava-se no maravilhoso, donde toda uma simbologia de concessões, a que teve que se amoldar o padrão ortodoxo, ao estimular uma estratégia de convivência dos símbolos eclesiais aos valores das massas, inclusive às suas refererências religiosas, como no caso da superposição, pelos missionários católicos, de santos católicos às divindades ou símbolos dos povos indígenas, como ocorre no caso da substituição da deusa asteca Tonantzin pela Virgem de Guadalupe. (p. 133). Os missionários, no trabalho de evangelização feito para as massas, recorriam à influência dos santos cristãos, assim usando semelhantes fundamentos também usados pelos seguidores de outras correntes religiosas. (p. 134).

De todos os modos, mesmo contendo alguma semelhança com práticas pagãs de antigas religiões, alguns missionários conseguiam passar às massas populares algum teor evangélico, ainda que frágil. Aí conta o princípio paulino do sentido evangélico dos pobres, dos não-letrados, de sorte que o culto aos santos – vivos ou mortos – implica um componente evangélico. Por ex., a devoção a Maria desemboca em algum contato com o Evangelho sobre Maria. Não se dá uma mera reprodução do culto prestado a
Tonantzin, mas há incorporação de elementos também evangélicos. Há, portanto, aspectos positivos nesse processo, sobretudo tomando-se em consideração a influência benfazeja de santos vivos, de carne e osso, cujo exemplo arrasta multidões.  (pp. 135-136).

Um outro discurso aí presente foi o discurso dos missionários (monges, mendicantes, jesuítas...). Nos primeiros séculos do Cristianismo, não se contava com gente especificamente formada para a missão. Não havia um dinamismo, nesse sentido. Quem, na Cristandade, disso vai se ocupar, são os monges, depois os religiosos. Os monges marcaram sua ação evangelizadora pelo testemunho pessoal, mas também pela combinação entre o discurso contra a idolatria e a adaptação (assimilação) prática à tradição de outros povos. No Brasil, algumas figuras de missionários falaram forte pelo seu exemplo evangélico, como no caso do Pe. Ibiapina e de Antônio Conselheiro. Embora o Vaticano II tenha insistido na vocação missionária de todos, e apesar dos esforços da Ação Católica, a ação missionária ainda não alcançou densidade, a não ser excepcionalmente com a ação de alguns leitos. (pp. 136-138).

- Depois dos monges, os Mendicantes buscaram assumir o discurso missionário, mas optando pelo campo das universidades, muitas delas lideradas por Dominicanos. O próprio Tomás de Aquino torna-se uma grande referência. Mas, eles estavam impregnados da realização de uma missão por meio da mera apologética (cf. A Suma contra os Gentios, de Tomás de Aquino), cujo foco não é a ação evangelizadora como tal, mas um exercício conceitual, tão característico da Escolástica. (pp. 139-140).

- Bem mais sucedidos no serviço da missão foram os jesuítas (em relação aos Mendicantes, inclusive aos Dominicanos). Tomaram caminho diferente, seja do ponto de vista de sua visão de missão (muito inspirada na teoria da missão formulada por Acosta, no séc. XVI,), seja do ponto de vista prático, de que são testemunhos o Pe. Ricci (na China) e o Pe. De Nobili (na Índia), à medida que trataram de buscar e trabalhar as semelhanças entre a sabedoria daqueles povos (principalmente, na China) e a Sagrada Escritura. Mas, a Santa Sé, em contexto de padroado, não aprovou esse estilo de missão, e tudo passa a ser regulado por meio das inspirações do Concílio de Trento. (pp. 140-143)

Por fim, um quarto discurso da missão, este produzido pelos papas da contra-reforma, que, em aliança orgânica com os reis (a quem confiaam tarefa missionária, ou seja, em função do projeto de conuista e colonização. Desde então, trata-se de assegurar uma ortodoxia, a partir da visão exclusiva de Roma (pp. 143-144).

Das páginas 145 a 172, cuida o autor de, em cerca de trinta páginas, analisar mais detidamente os distintos discursos da cristandade: o da nobreza, o da pobreza, o discurso evangélico e o discurso da unidade.

. Os vários discursos da Cristandade têm em comum um discurso social. A Cristandade pensa a sociedade como sendo campo exclusivamente seu ou que deve estar sob seu controle. A ela todas as pessoas devem obediência e sujeição, como se estivessem diante do próprio Deus. Só na modernidade é que se vai questionando e rompendo com esse modelo, por meio do lugar que o indivíduo passou a ocupar, com sua capacidade de pensar, sentir e agir diferente da norma geral. (p. 145)

Entender a Palavra de Deus como sendo dirigida a todos é interpretada, pelos discursos hegemônicos da Cristandade, como sendo obra sua “levar” a todos essa Palavra, e apenas sob sua perspectiva, do seu jeito. O messianismo, tal como exercitado pelas cruzadas, constituiu o exemplo mais forte do discurso da Cristandade. O que não quer dizer que o messianismo não se tenha estendido a outras épocas da Cristandade. Esteve presente, por exemplo, nos movimentos pauparísticos (século XII), no hussismo (João Huss), nas experiências messiânicas animadas pelo teólogo alemão, Thomas Müntzer, contemporâneo de Lutero, entre segmentos do protestantismo, etc. (pp. 145-146).

Com relação ao discurso da nobreza, percebe-se que se tratava da forma específica como a Cristandade lidava com os segmentos da nobreza, imperadores e reis, como se fossem representantes de Deus na terra. Isto se dá de modo mais acentuado no Oriente (Igreja bizantina e Igreja russa).], onde a teoria da realeza alcança uma evolução mais expressiva. Para Mayendorff, o que implicou uma tragédia
Dessa experiência foi a atribuição ao Estado – e portanto aos seus prepostos – de representar os valores do Reino de Deus na terra, como se imperadores e reis fossem novos Salomões e novos Davis, porta-vozes fiéis da vontade de Deus, a quem todos lhes deviam obediência: “A tragédia do sistema bizantino foi ter confiado em que o Estado pudesse tornar-se, como tal, intrinsecamente cristão.” (p. 147: a nota de Comblin remete a Jean Meyendorff. Introduction à la théologie byzantine, p. 283).

A teoria da realeza predominou na Cristandade por séculos, sobretudo no Oriente, mas também no Ocidente, no contexto do período carolíngio. No Ocidente, o predomínio foi menos, por conta da posição defensiva dos papas, que se constituíram em adversários para reis e imperadores, do ponto de vista de sua pretensão ao sagrado, ou seja: enquanto no Oriente, imperadores e reis eram consagrados em seu poder como legítimo representante de Deus na terra, no caso do Ocidente, a figura dos bispos não permitiu que tal predomínio se desse tão abertamente, ainda que o regime do padroado comportasse muitas concessões... (pp. 148-149).

Nesse contexto, sementes do evangelho poderiam estar sinalizadas no dever dos príncipes de defender os pobres, os órfãos e as viúvas, pelo menos em tese. Os pobres tudo deviam aos reis e imperadores. Não tinham vida própria, não eram protagonistas, pelos critérios dessa relação.  A teoria da Cavalaria constituía uma expressão da teoria real/imperial, não brotou de modo abrupto, mas evoluiu durante séculos (do séc. VII ao séc. XII). Assemelhava-se a uma Ordem religiosa adaptada à vida militar.  (p. 150).

Foram os monges os educadores, não propriamente dos camponeses, mas da nobreza. Para manter seus interesses, os cavaleiros constituíam um segmento fundamental, à medida que faziam parte de sua defesa militar. Sendo assim, a teoria da Cavalaria aplicada pelos monges de Cluny (e depois, os de Citeaux), erigia os Cavaleiros como heróis, como o modelo de vida cristã para os leigos. Trataram até mesmo de legitimar a violência dos Cavaleiros, buscando aproximá-la do Evangelho, um contra-senso que eles trataram de legitimar, alegando que os Cavaleiros, em sua função nas cruzadas e em outras atividades bélicas, estavam a defender o próprio Cristo. Suas qualidades eram até enaltecidas na poesia da época (El Cid, Rolando). E até houve reis tornados santos, a exemplo de São Luiz da França. (pp. 150-153).

A seguir, Comblin passa a analisar o discurso da Cristande voltado para os pobres. Estes eram, na grande maioria, analfabetos. Uma grande parte dos nobres, também eram analfabetos, mas contavam com os monges ao seu lado. Nesse contexto de grande penúria para as massas (segundo F. Braudel, lembra Comblin, a expectativa média de vida não passava dos trinta anos!), as práticas eram todas pela via da oralidade. Eis por que aí se sobressaem duas formas principais de vida religiosa: a do cultivo da penitência e a do maravilhoso (do milagre). De fato, até o final do antigo regime, as massas tinham como modelo de prática religiosa a cultura penitencial, em que vigiam as romarias (Roma, Santiago de Compostela, Jerusalém, e outros santuários), as procissões, os atos penitenciais, as missas de defuntos, a Semana Santa, a promoção da culpabilização, dos flagelos e de celebrações semelhantes. A outra forma de prática religiosa que prevalecia era a do cultivo dos milagres, dos santos, do maravilhoso. (pp. 153-156).

Não se pode dizer que, nesse caminho então adotado, e que oscila entre o discusrso da penitência e o discurso do maravilhoso, não se tenha cuidado (também) dos pobres. Isto se fez tomando-os como alvo de “caridade”, mas não se tratou de ajuda-los a se libertarem da exploração, da opressão e da marginalidade. “Ela não abriu novos espaços para os pobres.” Naquele contexto, havia duas possibilidades de se lidar com os camponeses: ou via da liturgia, da prática do maravilhoso ou pelo incentivo à leitura da Bíblia (opção esta escolhida pelos Protestantes) (p. 156).

A espiritualidade fundada na liturgia foi a grande opção, não apenas da Igreja Católica do Ocidente, como também e sobretudo da Igreja do Oriente. A vida cristão é centrada na liturgia, com uma atenção menor às relações concretas da vida cotidiana, aos desafios da vida material. Mesmo sendo no Oriente quanto no Ocidente centrados na liturgia, esta era exercitada diferentemente, num e noutra. No Oriente, a tônica litúrgica recaía sobre a figura do Ressuscitado, como se pouco dissesse o caminho da cruz, o que provoca uma certa ilusão; no Ocidente, a liturgia priorizava a cruz, ou mesmo nela exercitava um monopólio, o que implica uma visão fixa no sofrimento e na cruz, com perda de vista da ressurreição (ex.: as 14 estações da Via Sacra; a Semana Santa tendo seu auge na Sexta-Feira da Paixão com a procissão do Senhor Morto.(pp. 156-160).

Um terceiro discurso da Cristandade é o discurso evangélico. Dele se aproximam com mais intimidade os movimentos reformadores. Pela aproximação à Palavra de Deus, à Bíblia, eles vão descobrindo que o mundo tal como se acha organizado, não comporta o Reino de Deus. Eles se sentem chamados pela Palavra a denunciar o mal que se opõe à Boa Nova de Jesus. Tomam o caminho da cruz, que os leva necessariamente a descobrir os pobres e com eles caminhar, na solidariedade ao seu sofrimento, no testemunho de relações alternativas às então vigentes. Esse caminho foi apontado por monges, principalmente por Santo Antão, descobrindo e passando a viver pobremente e a servir a Jesus nos pobres. Depois, vieram testemunhas como Francisco, Domingos e os movimentos pauperísticos. Uns foram condenados; outros foram tolerados pela hierarquia, num tempo em que alguns hierarcas como o Papa João XXII negava que Jesus tivesse sido pobre, e ameaçava condenar quem assim pregasse. (pp. 160-166).


Capítulo IV –  “A reforma e a palavra – O capítulo IV estende-se da p. 173 a 197, e se acha distribuído em duas partes: uma dedicada a investigar a relação entre a Palavra de Deus e a Reforma Protestante (pp. 173-189) e outra especificamente dirigida à análise darelação entre a Palavra d Deus e a reforma da Igreja Católica (pp. 189-197).

A Reforma protestante surge como reação à Cristandade, frente `à hierarquia da Igreja Católica, que tentava substituir por si própria a Palavra de Deus. Surge a Reforma a clamar pelo retorno à Palavra, esta simbolizada pela Bíblia: “A palavra de Deus chega, na mentalidade popular protestante, a confundir-se com a própria Bíblia.” Aos olhos de hoje, tal interpretação parece limitada. (p. 173)
- As atividades das igrejas reformadas foram centradas na Bíblia, entendida como “a” Palavra de Deus, sem mediação humana: sua teologia, sua liturgia, seus ministérios. (p. 173).

Em reação à Reforma, também houve por parte daIgreja Católica, ao seu modo, uma certa volta à Palavra, mas de modo a exaltar os sacramentos. Os Reformadores, porém, é que acentuaram a primazia da Palavra de Deus. Convém lembrar que houve uma pré-Reforma (séculos XIV e XV), cujos traços são bastante semelhantes aos que compuseram a Reforma do século XVI. (p. 174).

O conceito de Reforma prende-se ao chamado “princípio protestante”, que, ao longo da história, nem sempre foi observado pelas igrejas reformadas, donde a constante inquietação de suas lideranças mais fiéis, no sentido de se retomar periodicamente o crivo dos princípios. (p. 174).

No esforço de se defender a primazia da Palavra, os Reformadores se valem do “princípio protestante”, enfatizando três de sueus aspectos: a “sola Scriptura”, a “sola fides” e o ministério da pregação. Trata-se de, não apenas de não confundir a Palavra de Deus compalavra humana, como também de evitar qualquer interferência humana na ação de Deus. (p. 175).

Importa saber que fatores contribuíram fortemente para um acento tão forte, na prática, dessa primaziada Bíblia, já que, do ponto de vista formal, tanto a Confissão de Augsburgo (artigo V), do lado protestante, quanto o Concílio de Trento, do lado católico, defendem a confluência da Palavra de Deus e dos sacramentos. (p. 175).

Houve uma série de fatores que precipitaram essa tendência contundente dos Reformados: o fato de que a Cristandade se havia afastado da Igreja dos primeiros tempos, muita fundada na Palavra, passando a superestimar o valor dos sacramentos. Isto exacerbou a tendência da Cristandade em favor duma colusão entre Cristianismo e aquele sistema político, entre o Cristianismo e aquela teologia imperial, uma colusão da religião popular, uma colusão entre o Cristianismo e a incorporação dafilosofia helenista por meio da Escolástica (p. 175).

Por outro lado, a superestimação da Bíblia pelos Reformadores também implicou sérios problemas com a modernidade e com as relações com as distintas culturas. A firme decisão de não aceitar interferência humana na ação de Deus, ou pelo menos minimizá-la ao máximo, enseja uma negação do homem: “A afirmação protestante de Deus inclui uma negação do homem. O princípio protestante tende a colocar a fé em termos de alternativa: ... ou ... ou.” (p. 176).

Na prática, porém, os Reformadores não deixam de servir-se necessariamente de alguma mediação: o livro, a língua hebraica ou grega, além de outra smediações culturais. Mas, mostram-se bastante rigorosos, sempre que se trate de aceitar alguma interferência humana na ação de Deus. Isto pode levar-nos a perguntar se o próprio Deus não quer assim: que Sua ação passe pela mediação humana. (p. 177).

De todos os modos, o grande mérito dos Reformadores foi seu empenho na retomada dacentralidade da Palavra de Deus. Embora não tenham sido eles que criaram isto, coube-lhes retomar com toda a força. No século XII, já havia um movimento dos Mendicantes nessa direção da pregação daPalavra e do catecismo, mas esse movimento mais impactante veio com a Reforma. (p. 177).

Em 1529, Lutero lança o seu grande Catecismo, e, visando os pastores de pouca instrução, também o “Enchiridion” (o pequeno Catecismo). Tanto do lado protestante quanto do lado católico, pairava a ilusão de expressar toda complexa história da Bíblia (livro secularmente construído e com uma complexidade de sua evolução histórica) por meio de fórmulas racionais. O autor cita, inclusive, uma explicação por parte do Lutero, no Enchridion, sobre o que ele escreveu quanto ao conteúdo essencial da fé. O autor o faz, para prevenir contra a suposição de que um conteúdo tão denso da fé possa ser abrangido por proposições. (p. 178).

O autor reconhece, entre as próprias igrejas reformadas, difenciações: umas mais extremadas, outras mais contidas. De todos os modos, alerta para o fato de que, mesmo as denominações mais contidas têm dificuldade de reconhecer as interferências histórico-culturais de sua leitura, tida como expressãoda Palavra de Deus. (p. 179).

Passa, então, a examinar a incidência de uma leitura inculturada na teologia protestante. Karl Barth constitui uma das principais referências dos reformados, ainda que a nova geração de teólogos protestantes lhe façam restrições. Mesmo assim, ele segue sendo bem mais representativo da doutrina reformada do que pensa a nova geração. Para Barh, existe uma orgânica linha de continuidade entre a palavrarevelada (o que Deus pronuncia), a Bíblia e a palavrado pregador reformado. Comblin critica tal entendimento, argumentando que a interpretação dada pelo pregador, sendo histórica e culturalmente situada e datada, pode não corresponder com fidelidade à da Bíblia, que, aliás, sendo muda, não pode contestar, se for mal lida ou interpretada. (pp. 179-180).

Dados o lugar e o prestígio de que goza o pregador reformado, este – sobretudo por meio de seus teólogos e das suas grandes escolas de teologia – apalavra destes passou a substituir o que, na Igreja Católica, se entende  por magistério eclesiástico. (p. 180).

Com base sobretudo em P. Chenu e P. Tillich, o autor atribui o lugar privilegiado do pregador reformado (bem como o dos teólogos formados nas grandes faculdades de teologia protestantes) à ênfase em sua capacidade intelectual, argumentativa, treinados para falar sobretudo ao intelecto dos ouvintes. (p. 181).

Processo que o autor situa como correspondente a um segundo momento de Cristandade, agora na Cristandade Ocidental, de feição protestante, caracterizado pela formação de uma classe de intelectuais, separada da base das Igrejas reformadas. Classe que disputava com os humanistas o poder, embora se dissessem adversários, eram, antes, rivais, dadas suas fortes semelhanças, do ponto de vista histórico e social. (pp. 181-182).

Fato similar também se passa na Reforma Católica, pela dos seminários. Aqui também se gesta uma classe dos intelectuais, com capacidade intelectual de mando e influência sobre o conjunto dos fiéis. A doutrina da primazia da palavra se mostrava funcional e legitimador do discurso intelectualizado dos pregadores reformados. Até chegaram a ser favorecidos lá onde encontraram uma massa de fiéis alfabetizada, como foram os casos de Genebra e de Zurich, onde a taxa de albetização e de escolaraização chegou a alcançar entre 10 e 20% da população. (p. 182).

Socialmente favorecidos pelo seu discurso, e este assumido como a expressão da Palavra de Deus, pregadores reformados e sacerdotes passaram a inocular nas massas populares sua religião de letrados, por meio de imposição de catecismos, de um lado, e, por outro, por meio da denúncia contra o que chamavam de superstição, o saber popular (dos camponees, dos índios, dos africanos), sem sequer se darem ao trabalho de procurar entender as características da religião popular e de como a Palavrade Deus nela incidia. Alguns deles chegaram a transformar-se em inquisidores da religião das massas populares. (pp. 182-183).

Chama a atenção a longa duração (400 anos!) desse processo de ascensão dos pregadores reformados e dos sacerdotes, seja no âmbito da Reforma protestante, seja no âmbito da Reforma católica, utilizando, uns quanto outros, seu discurso intelectual como se fora a expressão da Palavra de Deus, desconhecendo o quanto de sua época tinha tal discurso, além de sua utilidade como instrumento de legitimação. (p. 184).

À medida que o discurso intelectual de pregadores reformados e de sacerdotes implicava desconfiança e perseguição em relação à religião do povo, este acabou abandonando as igrejas, tão logo conseguiam condições favoráveis (no processo das lutas oerárias do século XIX. A religião dos intelectuais não podia ser uma religião de classe trabalhadora. O discurso intelectual não enfrentava os desafios sociais, limitando-se apenas à subjetividade, ao indivíduo, à consciência e a vontade de cada um, sem implicação de mudança de vida, de conversão social. A pedra de toque do discurso intelectual era centrado no indivíduo, na consciência individual, na inteligência, na vontade individual, enquanto a religião do povo apresentava-se sensível à solidariedade, à consciência coletiva. Boa parte dos setores populares remanescentes nas igrejas se deveu ao apelo abusivo ao sentimento de culpabilidade. Tão logo conseguiam superar essa apelação, tratavam de emancipar-se das igrejas. (pp. 184-185).

As últimas páginas do estudo sobre a relação entre aPalavra e a Reforma protestante  são dedicadas a compreender o sentido da ação do Espírito Santo, no desenvolvimento das atividades das igrejas reformadas,  junto aos pregadores reformados, bem como na revelação e na Bíblia. O autor se baseia na Confissão de Augsburgo. (p. 186).

Nas igrejas Luterana e Calvinista, a ação do Espírito Santo é invocada no Batismo, bem como no memorial da Ceia do Senhor, além de Sua ação como Doador dos dons, derramando sua força nos portadores dos distintos carismas. Acentua-se a presença do Espírito Santo na formação subjetiva da fé, não na experiência. É pela fé que o Espírito Santo atua, independentemente da experiência. (pp. 186-189).

Também a Igreja Católica, à sua maneira, empreendeu sua experiência específica de reforma, inclusive no tocante a certa valorização da Palavra, sob a influência dos chamados padres da Igreja. (189-190). Valorização muito presente nos ritos sacramentais e na liturgia: “Houve uma liturgia católica exuberante, esplendorosa, missas que pareciam obras de arte musical e coreográfica. A liturgia católica provocou, por sinal, admiráveis Missas polifônicas, desde as de Palestrina às de Bach, Mozart e Beethoven.” (p. 190). Só que o povo ficava de fora. Era uma liturgia para o clero. O povo ficava passivo na missa, sem entender o que se passava. Daí o hábito de rezar o rosário e outras orações, justamente durante a missa...

Nesse contexto, a Palavra de Deus, sendo as missas rezadas em Latim, vinha filtrada pelo sermão do padre. Este transmitia o que e quanto lhe convinha da Palavra de Deus. No caso das igrejas reformadas, era também forte a atenção sobre o discurso do pastor. (pp. 190-193). Numa época marcada pelo uso e abuso da retórica e da lógica, protagonizado por uma classe de intelectuais em que se tornou o clero (neste ponto, não distante dos pastores), “A palavra de Deus é o que desce do papa para os fiéis, passando pelos bispos e pelos padres.” (p. 193).

Durante a Reforma – tanto das Igrejas Reformadas como da Igreja Católica -, interpretou-se a ação do Espírito Santo de modo privatista, intimista. Sua presença era invocada, no caso da Igreja Católica, como aval das decisões conciliares, em matéria de moral e disciplina. Ao interno das igrejas, julgava-se muito restrita a ação do Espírito: para iluminar os estudos do clero, para animar a disposição dos fiéis individualmente. Tratava-se, no dia-adia dessas igrejas, de “salvar a alma”, tanto no sentido de fazer os fiéis se voltarem ao futuro (e não ao presente), quanto de se ocparem apenas de sua própria salvação. As massas sofridas dos pobres estavam fora dessas inquietações. O clero e os pastores agiam, salvo exceções, como classe de intelectuais a serviço de seus próprios interesses. (pp. 193-197).

Capítulo V: A palavra da Modernidade – Este capítulo vai da p. 198 à p. 264, e vem distribuído em três parágrafos: o discurso da modernidade, a modernidade face ao cristianismo, e as igrejas face à modernidade, além da conclusão. Cada parágrafo comporta dois tópicos com subtítulos.

Embora não seja a modernidade o objeto mesmo do estudo – e sim a Palavra de Deus no mundo -, o objetivo do autor é justamente examinar de que modo o discurso da modernidade implicou alterações ou interferiu no discurso da cristandade, das igrejas. Alertando que sinais de modernidade podem ser observados desde a mais remota idade, o autor lembra que o que hoje se entende por modernidade arranca desde o final do século XVII, desde a Inglaterra, países baixos, França, depois disseminando-se pela Europa, pela América e outros continentes, até alcançar todo o mundo. Isto não quer dizer que o conjunto das populações participem ativamente da moderniadade. Numerosas massas populares são, antes, por ela arrastadas, vêe-se por ela invadidas.  (pp. 198-199).

Curioso é que a modernidade aparece no contexto da cristandade; nasce dela. De início, de modo a permitir certa convivência não belicosa. Desde os renascentistas, a modernidade vai surgir movida por outra grade de valores, bebidos do legado greco-latino. Há crises que vão aprofundando esse afastamento: desde o final do séc. XVII, depois com a Revolução Francesa. O fosso aumenta, configura-se a separação. (pp. 199-202.

Diferentemente do período da cristandade que teve no segmento sacerdotal seus agentes e protagonistas organizadores do pensar hegemônico, na Modernidade surge outro segmento, o dos intelectuais como principais ideólogos da organização da sociedade. A Modernidade vai contar com um grande contingente de intelectuais (escritores, profissionais liberais, engenheiros, jornalistas, etc., etc.) que se incumbem de alimentar a grade de valores então predominante. (cf. p. 203-204).

A base dessa nova hegemonia de valores fundava-se, ao mesmo tempo, no combate a fontes externas ao ser humano de conhecimento da realidade, e no investimento no esforço de apreender, compreender e explicar os fenômenos sempre a partir do próprio homem, pelos caminhos das ciências e da razão. Não é por acaso que as três palvras-chave do discurso da modernidade são a razão, a felicidade e a liberdade. (cf. pp. 205-206).

O autor lamenta que, em razão do mal-entendido transmitido pela Cristandade à Modernidade, esta se tenha armado contra o o que ela entendeu por Cristianismo, de modo tal a contrapor-se visceralmente ao Cristianismo, quando se sabe que o núcleo da mensagem evangélica implica também a defesa de princípios como a razão, a felicidade e a liberdade. Como para os modernos a proposta cristã se confundia com o que lhe foi passada pela Cristandade, daí a recusa e a hostilidade contra o Cristianismo.

Pela via do exercício da razão, isto é, do conhecimento de si e por si, o ser humano iniciava seu percurso de emancipação, à medida que lutasse contra os preconceitos, que investisse na observação dos fenômenos, que ousasse saber (“Sapere aude”), tudo pusesse sob exame, nada de superstições ou ilusões. Eis o núcleo do discurso da razão, ou seja, da aposta suprema no poder da ciência, das ciências contra o discurso teológico.

Associado ao exercício da razão, pela aposta no discurso científico, vinha o investimento na produção da felicidade. O ser humano esta chamado a realizar-se, buscando desenvolver suas potencialidades, em busca de realização de seus projetos. Investimento semelhante em relação à liberdade: o ser humano é historicamente chamado a libertar-se das mais distintas formas de escravidão. (cf. pp. 208-210).

No que diz respeito à liberdade, o autor destaca que os modernos tiveram que conquista-la em distintas frentes: no combate ao monopólio das idéias dos segmentos então dominantes (reis, nobres, clero); no combate aos privilégios e o combate ao monopólio das consciências (combate aos deuses) (cf. pp. 213-214).

O discurso burguês vai progressivamente se impondo, à medida que se instala a polêmica entre duas de suas correntes: a que acentua a força do idealismo e a que propugna pela eficácia do materialismo, debate também enfrentado pelo Marxismo, desde o jovem Marx (na “Ideologia Alemã”, por ex., junto com Engels). Ligado a isto, está sua capacidade de empreendimento, impulsionada pelo sonho, pelo seu projeto de conquistar condições de satisfação das necessidades, tendo o consumo como um alvo predileto.

Tal projeto predispôs a burguesia a algo novo: à produção incessante de mais riquezas. Antes, os segmentos privilegiados (nobreza e clero) torravam todas as suas economias (adquiridas por meio da guerra) em aplicações de conforto: castelos, conventos, templos... O projeto da burguesia era o de produzir cada vez mais riquezas, inclusive pela acumulação. (cf. pp. 214-215).

Da estratégia de conquista e de manutenção de seu projeto político, como acontece a outras forças políticas emergentes, faz parte a produção de um discurso sintonizado destinado a convencer o conjunto da sociedade da eficácia de sua nova proposta. O discurso tecido pela classe burguesa mostrou-se bastante persuasivo e eficaz, à media que revelou a força de suas palavras-chave – razão, felicidade e liberdade; à medida que fez recuar parte dos segmentos dominantes (nobreza e clero) de seus privilégios, sem o que o processo revolucionário não se teria completado (as fissuras intraclassistas são um fator não desprezível); à medida que foi capaz de convencer amplos setores da sociedade ante a demonstração de seus feitos (em duzentos anos foi capaz de introduzir mudanças na sociedade (na produção, na vida social, política e cultural) que o antigo regime de cristandade não conseguira em 20 séculos. (cf. pp. 216--220).

O autor acentua o papel dos intelectuais na organização da modernidade. Eles cuidam de expressar, de enunciar os valores-chave da modernidade. Sua contribuição mais densa reside no exercício da crítica contundente de tudo. Destaca o ppel de intelectuais como Kant, Marx, Darwin, Nietzsche, Freud, Heidegger, entre outros. Valendo-se da metodologia científica, examinam  a fundo a vida social, econômica, política, cultural, buscando conciliar os sonhos e aspirações daquela sociedade com caminhos que levem à sua realização. Com argumentos contundentes, desmontam o antigo regime, para desespero da Cristandade, que nada compreende, e se dedica ao combate mais extremo a tudo o que venha da modernidade. Os intelectuais modernos, a exemplo de Marx, mostram-se radicais em sua crítica ao sistema tradicional, ao afirmar que já não satisfaz filosofar apenas, é preciso transformar o mundo, conforme mensagem correspondente da famosa Tese 11, de Marx sobre Feuerbach, no que, de certa forma. (cf. pp. 221-225).

No entrechoque que se vai consolidando entre a cultura moderna e a cristandade, os modernos começam a vencer pela derrubada dos privilégios dos segmentos da antiga elite (nobreza e clero). Também, oor meio da ampla circulação e divulgação de seu ideário. De tal modo que, se nos primórdios da modernidade, ainda havia uma certa convivência entre intelectuais de ambos os lados, a partir do século XVII, vai ganhando progressiva autonomia o pensamento moderno contra a cristandade. Os intelectuais modernos se multiplicam, em progressão geométrica, nos mais distintos campos de saberes, a ponto de se contraporem abertamente com o pensamento eclesiástico. Seguem-se exressivas vitórias, a partir da laicidade, expressa através de vários procedimentos e recursos (registro de nascimento civil, casamento civil, cemitério civil, etc.). Lembra o autor que as últimas batalhas perdidas pela cristandade ante o avanço da modernidade estão o divórcio, os contraceptivos e o aborto. (cf. pp. 226-231).

Notável foi a capacidade de produção e de divulgação pelos intelectuais da modernidade de ampla literatura, que contribui vivamente para a hegemonia do pensamento burguês e da derrota da cristandade. A isto juntam-se outras iniciativas desses intelectuais, formando-se, inclusive como classe a defender também, nesse embate, seus próprios interesses. Por outro lado, sua oposição sistemática ao cristianismo revelava uma confusão sua entre Cristianismo e Cristandade. Ao combater o Cristianismo, olhos fixos nas práticas da Cristandade e de suas respectivas igrejas, os modernos não tiveram acesso, por alguma razão, ao núcleo fundante do Cristianismo. Por outro lado, aos olhos e ouvidos dos intelectuais da modernidade, eram as igrejas, a Cristandade, quem se passava como únicas representantes do Cristianismo... De todos os modos, lembra o autor, convém não esquecer que as posições extremadas tomadas pela burguesia contra o Cristianismo também têm a ver com sua percepção justamente do núcleo fundante da proposta de Jesus: a opção pelos pobres. (cf. pp. 232-238).

A despeito de toda a profunda e sistemática oposição da burguesia contra o Cristianismo, importa reconhece-la também como uma religião. Todo o seu discurso anti-religioso, de convencimento das massas populares a se libertarem do jugo, do controle eclesiástico de suas consciências, isto não impediu que a burguesia erigisse sua própria religião, com seus dogmas, sua liturgia, seus sacerdores, seus sacrifícios, etc. Ocorre, por outro lado, que tal religião burguesa – ou a versão burguesa de Cristianismo – acabou seduzindo amplos setores das igrejas, graças à sua astúcia de ir penetrando o terreno das próprias igrejas, tornando-se assim um uma ameaça à proposta de Jesus. Desafio grave, portanto, ao discernimento das lideranças das igrejas, que, não raro sucumbindo às armadilhas da religião burguesa, confundem-na com o próprio núcleo da mensagem evangélica, tanto mais pelo fato de que “Os burgueses não gostam de profetas nem de profecias. Gostam de um cristianismo razoável, sem aventuras e sem riscos. O mundo dos pobres não está no seu mundo.” (p. 244).

No terceiro e último tópico deste capítulo, Comblin se pergunta de que modo as igrejas se portaram ante o desafio da modernidade. Sendo elas chamadas a interpretar os sinais dos tempos, como foram capazes (ou não) de compreender esse amplo e complexo acontecimento da modernidade? De um lado, a Igreja Católica portou-se sistematicamente fechada, impermeável a tudo que dissesse respeito à modernidade, de bom e de ruim. Simplesmente dipsposta a combatê-la, a condená-la “in totum”, do que são testemunhos seus escritos condenatórios (o “Syllabus”, o documento “Humani Generis). Esta obsessão se manteve até o Concílio Vaticano II, com a agravante de que muita gente seguiu ignorando a dimensão inovadora do Vaticano II. Por outro lado, as igrejas reformadas, com maior abertura a dialogar com a modernidade, por vezes até excedendo-se neste exercício, a ponto de assimilar e reproduzir muitos dos seus vícios. (cf. p. 245ss).

Os Jesuítas e os Oratorianos constituíram as poucas organizações eclesiásticas que ousaram entender e dialogar com a modernidade. No caso da Companhia de Jesus, isto se fez, aos trancos e barrancos, sob cerrada perseguição das forças hegemônicas da Igreja Católica, até conseguirem estas desautorizar completamente as atividades dos Jesuítas. Enquanto puderam, estes testemunharam sua capacidade de diálogo com a moderniadade, sob vários aspectos: na abertura às letras e às artes; na busca de sensibilizar os monarcas, nessa direção; no acompanhamento da expansão, quando dos grandes “descobrimentos”, pondo-se a favor dos povos indígenas. cf. pp. 245-253).

De parte de setores ligados à Igreja Católica, houve alguns intelectuais que tentaram conciliar os temas da modernidade com uma interpretação teológico-filosófica do Cristianismo, especialmente por meio de autores hegelianos, a começar dele próprio. A principal figura que Comblin ressalta nessa busca é do filósofo alemão Schlemeiermacher, à medida em que buscou interpretar tal diálogo com olhar especial para a racionalidade interna ao fenômeno religioso, por meio da intuição, enquanto reconhecia legitimidade dos procedimentos científicos no trato com as realidades seculares propriamente. (pp. 253-264).

Capítulo VI: o discurso revolucionário – Alentadas sessenta e três páginas, da p. 265 à p. 328 – eis o que nos oferece Comblin, para apresentar o tema do discurso revolucionário e sua relação com o discurso cristão. Distribui a discussão em duas grandes partes: começa a examinar a  emergência e o teor do discurso revolucionário e, em seguida, a relação entre o discurso revolucionário e o pensamento cristão.

Ao longo de sua trajetória, após o período constantiniano, a Igreja tem lidado mal com o desafio das revoluções. Quase sempre assumindo uma postura de condenação e reacionária. Como seus dirigientes – a hierarquia – vivem, não raro, mancomunados com as forças dominantes, e tendo em vista que os processos revolucionários são protagonizados pelos “de baixo”, tal iniciativa é quase sempre desaprovada, acusad de subversão à ordem querida por Deus, através dos príncipes...

Já não é a mesma a posição da instituição eclesiástica, ao lidar com ações violentas protagonizadas por setores das classes dominantes. A posição aqui é quase sempre de apoio incondicional. Também, por conveniências, não raro “esquece” que, em determinado período, chegou a apoiar iniciativas revolucionárias desenvolvidas por figuras do clero, como chegou a defender, por exemplo, o engajamento de figuras tais como Hidalgo e Morelos, enquanto assume uma postura condenatória quando se trata de uma figura da contemporaneidade, como ocorreu em relação a Camilo Torres
O discurso revolucionário é fruto da modernidade, mas também colhe elementos da cristandade. A própria Bíblia não deixa de ser um poço de inspiração para o discurso revoluicionário, em especial os profetas.

O discurso revolucionário emerge desde baixo, desde os pobres, acuados por situações de miséria, de exploração, de opressão e de marginalidade. Daí surge a rebeldia, nasce a revolta. Ainda que revolta não signifique revolução, ela expressa um estado explosivo, que pode conduzir, mais tarde, a processos revolucionários. Para tanto, não basta o sentimento de rebeldia e de revolta dos pobres. Daqui nasce a indignação, o brota o clamor, mas insuficiente para conduzir a processos revolucionários. Estes correspondem ao encontro entre as situações de grande indignação coletiva, de um lado, e, de outro, com a contribuição indispensável de segmentos da classe dominante identificados e comprometidos com os clamores dos “de baixo”.
O conteúdo do discurso revolucionário comporta distintas características. Uma delas tem a ver com os frequentes recursos à linguagem panfletária, de formulação de denúnicas contra a ordem vigente. Exemplo disto são os célebres Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels (1847/8) e o Manifesto redigido por Marx a pedido da Primeira Internacinal, em 1864. O discurso revolucionário estrutura-se fundamentalmente na disposição de denunciar as distintas formas de exploração, de opressão e marginalização, passando também pela iniciativa de analisar teoricamente seus componentes, bem como seus fatores, suas raízes estruturais. Feita a parte da denúncia, importa sensibilizar as massas, no sentido de unir-se para um enfrentamento com as forças dominantes e suas respectivas estratégias. (cf. pp. 266-272). Motivação a merecer constantes análises, em busca de identificar as raízes dos males sociais. Aqui se empenha na deslegitimação pública do sistema vigente, ao tempo em que se conclama o povo oprimido a tomar posição de resistência e de enfrentamento ao mesmo sistema.  Trata-se, também, de esboçar elementos da nova sociedade a ser construída por esses protagonistas.

No ítem seguinte, cuida o autor de examinar a força do discurso revolucionário. Este é portador de um potencial que sacode todas as classes, as com que ele se identificam – neste caso, pelas vias de uma tendência messiânica -, como os que com ele não se identificam – neste caso, sentem-se impactados pelo horizonte da modernidade.
 Dentre as forças revolucionárias mais expressivas, destaca-se o marxismo. O discurso marxista constitui um edifício complexo, não-homogêneo. Com inspiração em seu principal fundador, Marx, carrega também distintas e, por vezes, contraditórias interpretações. Fala-se até em marxismos, em alguns dos quais o próprio Marx não se reconheceria. Há, também, figuras de referência do Marxismo, a exemplo de Lênin e Stálin, que tiveram um papel nada desprezível: o primeiro na elaboração de uma ideologia, enquanto o segundo na elaboração de uma ortodoxia. Ainda segundo ao autor, ao lado de relevantes contribuições no Marxismo, este é também depositário  de várias parcialidades e limites - no Marxismo, em seus teóricos, no próprio Marx. Entre os limites aponta, por ex.: desproporcional desconfiança do potencial revolucionário dos camponeses (embora Lênine, reconhece o autor,  tenha favorecido a aliança operário-camponesa; atenção insuficiente ao peso dos fatores culturais nos processos revolucionários; pouca atenção ao apego nacionalista em vários povos; cultivo de militantes profissionais. (cf. pp. 284-292).

São ainda apontados como limites: dirigentes profissionais que se perpetuam nos postos de direção, gozando de privilégios, inclusive tendo a força militar a seu favor; atribuição desmedida de poder aos intelectuais que, graças ao seu domínio teórico, acabam prevalecendo sobre as posições dos militantes de base, graças ao uso e abuso da teoria. (cf. pp. 291-294).

Reconhece o papel positivo de forças revolucionárias que apostavam mais no movimento de massas, ajudando-as a se transformarem em protagonistas. Forças que acabaram derrotadas pelo modelo do partido formado por intelectuais controladores da doutrina e por militantes profissionais, com direção centralizada.

Especialmente nos países latinos da Europa, entre 1850 e 1914, sublinha a capacidade dos operários revolucionários, no protagonismo de certos processos revolucionários, em que pese o reconhecimento também de seus limites, como apontou Marx, ao analisar o processo da Comuna de Paris. Faz claras reservas ao modelo de partido ultra-centralizado, que favorece o surgimento de militantes

Sintetizando, neste ítem, a força do discurso revolucionáio, aponta certa identificação do movimento revolucionário com os clamores dos pobres, significando sua edsperança, ainda que, por vezes, sob a forma de messianismo. Entende ter havido ma afinidade maior dos operários dos países latinos europeus com os processos revolucionários. Situação distinta em relação às massas populares de outras regiões do mundo, inclusive na América Latina, em que predominam os valores religiosos nem sempre bem entendidos ou respeitados pelos dirigentes partidários oficiais. Dai, o autor apontar, como se fizera um balanço crítico, pontos que identifica como fragilidades do discurso revolucionário especialmente em relação às massas populares: falta de sensibilidade aos valores religiosos das massas populares, linguajar intelectual distante do entendimento das massas, centralização partidária com monopólio dos intelectuais da oficialidade. (cf. pp. 298-300).

A segunda grande parte do capítulo VI é dedicada a conferir a relação entre discurso revolucionário e a mensagem cristã. (pp. 301-328). Durante um século e meio, lembra o autor, dados tores e circunstâncias históricas específicas, a relação entre discurso revolucionário e mensagem cristã foi assumida como incompatível, como necessariamente antagônica. Não se trata, contudo, de uma incompativilidade natural. A própria pré-história do discurso revolucionário atesta uma afinidade razoável com a mensagem cristã, a exemplo dos movimentos pauperísticos medievais, a despeito do reacionarismo do clero e de uma eclesiologia clericalista que se contrapunha ferozmente ao discurso revolucionário. Esse mesmo setor eclesiástico recusava-se a lembrar que ele próprio moveu intensos conflitos (“a guerra das investiduras”, durante cerca de meio século, a partir de 1175), contra o monopólio dos imperadores, que aquele setor acabou conquistando...  Nesse sentido, os setores reformados da cristandade mostraram-se mais abertos ao discurso revolucionário do que os setores privilegiados da Igreja Católica. (cf. pp. 301-304).

Com relação à posição dos partidos socialistas frente à religião, inclusive frente ao Cristianismo, foi em geral de um radical antagonismo, por vezes manifesto em forma de seu ateísmo militante. Isto se deu no regime marxista, em várias partes do mundo: na Europa de Leste, na ex-URSS, na China, no Vietnã, na Albânia, inclusive em Cuba. Aqui, lembra o autor, houve alguma concessão da parte de Fidel Castro, em especial no caso do apoio à aliança no Chile entre marxistas e cristãos, mas isto não valia para Cuba. Por razões táticas, especialmente quando havia certo controle, mas não se tinha todo o poder, havia certa tolerância a manifestações religiosas, mas dificilmente seria o caso, quando se tem o controle total do Estado. Isto gerou sérios problemas políticos em várias partes, em populações muçulmanas. Também, na Áfica, após a irrupção de vários Estados pós-coloniais. Aqui, além de problemas de ordem religiosa, foram também enfrentados sérios desafios por conta do sentimento nacionalista das massas populares.
Uma exceção à regra da rígida posição anti-religiosa dos partidos revolucionários se deu no caso da Nicarágua, em que, inclusive oficialmente, se manifestou uma conciliação entre os revolucionários marxistas e os revolucionários cristãos. Aqui, não se produziu inconciliação entre revolução e cristianismo. Em parte, por conta da pluralidade de forças revolucionárias dirigentes.

Já quanto à posição da Igreja Católica, mais precisamente, da hierarquia eclesiástica, frente ao discurso revolucionário, traou-se de uma posição ultra-reacionária. Discurso revolucionário era avaliado como blasfemo, herético, demoníaco. Isto se deveu ao fato de que o clero, casta privilegiada ao lado da nobreza, não aceitava as consequências da Revolução Francesa (e outras): perda de privilégios. Por esta razão, o clero se opunha ferozmente a reconhecer os direitos dos operários. Sempre se manifestava contrária a toda iniciativa de aumento salarial ou de alguma outra conquista. Daí o impactante anticlericalismo reintante, em diferentes processos revolucionários, seja na Europa, seja em outras partes.

A situação começa a atenuar-se com o surgimento, em 1891, de documentos da Doutrina Social da Igreja, a partir de Leão XIII, com sua encíclica “Rerum Novarum”. Ainda assim, persistiu até à morte de Pio XII, uma posição reacionária da Igreja Católica ao discurso revolucionário. A partir de João XXIII, do Concílio Vaticano II, isto resultou mais ameno.

Antes disso, importa lembrar a sutileza com que a Doutrina Social da Igreja, a partir de Leão XIII, apresenta como caminho intermediário entre a sistemática recusa de reformas e os caminhos da revolução. Opta por uma estratégia de colaboração de classes, em contraposição à luta de classes. Entende que esta desemboca numa revolução, que a Igreja quer evitar, escolhendo caminhos de reformas dentro do sistema, através do incentivo à colaboração de classes. Estratégia que se mostrou capaz de tranquilizar, durante um bom tempo, as tensões socaiis, em especial nos países europeus. No chamado Terceiro Mundo e na América Latina, dadas as circunstâncias socaiis mais graves, fez-se, antes, o caminho da revolução, como no caso da Nicarágua e de El Salvador. Mas, no caso da Nicarágua, já não nos marcos estritamente marxistas, uma vez que os protagonistas da revolução sandinista compreendiam forças plurais, marxistas e não-marxistas, com posições distintas com relação à religião. (cf. pp. 314-328).

Capítulo VII – A Palavra de Deus Hoje. Haveria lugar hoje para a Palavra de Deus? Teria ela desaparecido do horizonte presente? Até que ponto a Igreja consegue ressoá-la? Se Ela tivesse desaparecido, adverte o autor, então não seria certamente a Palavra de Deus. O que pode ocorrer é que a(s) Igreja(s) podem d´Ela haver tanto se distanciado, que já não seja(m) capaz(es) de ecoá-La aos homens e mulheres deste tempo. A história, por si, não garante a evolução da Palavra de Deus. Pode até suceder que, para recuperá-La, a(s) Igreja(s) tenha(m) que rastreá-La até às Suas origens...

O capítulo sétimo, que é o último do ensaio sobre a Palavra (Depois dele – e após a conclusão geral do livro - o autor incluiu um anexo sobre a tarefa dos teólogos da Libertação, hoje, visando com isto contribuir para o debate), distribui-se em dois grandes parágrafos: um que consiste em explicitar o sentido de “Palavra de Deus” (quem fala, fala para quem, qual o conteúdo da Palavra, qual o modo como ela se dá), enquanto o segundo parágrafo enfoca o discurso científico, a grande manifestação da modernidade: em que consiste, seus aspectos positivos, seus limites.

No primeiro parágrafo, cuida o autor de pontuar as características centrais da Palavra de Deus; quem emite a palavra, quem é seu destinatário, como a Palavra é recebida e convertida em ação... Em busca de fundamentar o sentido da Palavra de Deus, como ação e como força que gera ação, o autor lembra sua incursão específica pela “Ação”, em seu primeiro grande ensaio pneumatológico (“O Tempo da Ação”, Petrópolis: Vozes, 1982). Desde Usrael e através dos povos e culturas, a Palavra de Deus sempre se apresenta como força ou motivação ou chamamento para a ação.

Desde sempre, o Espírito Santo tem conduzido a palavra dos pobres: estes falam, conduzidos pelo Espírito Santo (cf. pp. 332-338). Falam pelo seu clamor. Os pobres são os destinatários especiais da “Palavra conduzida pelo Espírito” (p. 330ss). Deus fala sobretudo aos pobres. Por esta razão também a Igreja deveria ter nos pobres seu principal alvo de atenção e de escuta. Ela deveria ser inclusive a Igreja dos Pobres, sendo estes a maioria de seus membros. Eles é que deveriam ser seus principais protagonistas, não os ministros ordenados. Estes deveriam ser seus servidores.

Ao longo de grande parte da história da Igreja, os pobres, além de não serem ouvidos, são também mantidos à margem, inclusive pelas Igrejas. Estas – inclusive as reformadas – são controladas por elites letradas, junto às quias os pobres e sua palavra puoco contam. No caso da Igreja Católica, isto se torna mais claro, quando se substitui a Bíblia pela “Summa Theologiae”. Só a hierarquia controla o anúncio da Palavra.


Em Medellín e em Puebla, houve uma opção preferencial pelos pobres. Estes passaram a ser escutados, em parte, pois os pobres que passaram a falar não eram os mais pobres. Das CEBs faziam parte aqueles pobres que não viviam tão isolados, tão à margem. Jà conseguiam alguma organização. Eram, porém, minoria. A grande maioria ainda restava à margem, em seu clamor. A despeito de interpretações díspares, a religiosidade popular constitui um espaço de expressão da palavra dos pobres. A religiosidade passava a mensagem cristã. Medellín e Puebla foram épocas abertas à religiosidade popular.  Aí houve o surgimento de muitos “profetas-missionários” que conseguiam evangelizar com e a partir dos pobres.  Estes eram verdadeiros intérpretes do camor dos pobres. Por estes eram bem reconhecidos e apreciados. Isto se dava no seio das comunidades. Não e tratava de uma palavra de indivíduos isolados. Por sua boca, lembra o autor, se anuniava uma mensagem comunitária.

Neste e noutros ensaios, o autor insiste no mal que a postura “burocrática” do clero acaba cometendo contra os pobres. Uma forma de exclusão: falam uma linguagem estranha aos pobres. Trocam a Bíblia pela teologia escolástica (ou outras). Os pobres nem entendem nem se sentem concernidos por tal catequese. Eis por que é tarefa sobretudo de “profetas-missionários” animar a Palavra entre os pobres, já que se trata de leigos provenientes do meio do povo dos pobres. Para o autor, “o mundo será evangelizado por leigos ou não será evangelizado.” (p. 336).

Os ítens que seguem - “Falar aos pobres” e “O conteúdo da palavra” (pp. 338-348)  constituem uma pertinente crítica do autor ao fechamento da Igreja em si própria, tecendo um discurso para consumo interno, desligado do mundo, dos outros, principalmente distante da vida dos pobres. Foi o que fez, por ex., a Igreja Católica, durante um longo período entre os dois últimos concílios. Não por acaso, elege um tipo de discurso teológico – o da teologia do sobrenatural e da revelação – que, de si, exclui os interlocutores fora da instituição, distancia-se do mundo, distancia-se dos outros, distancia-se dos pobres. Pior: distancia-se do Evangelho. A mensagem evangélica é dirigida aos pecadores, aos pobres, aos fracos, não a pretensos sobrenaturais.

Enredada no discurso teológico do sobrenatural, a Igreja produz um discurso seletivo, destinado às elites. Não apenas seu discurso, também seus recursos privilegiam movimentos conservadores, identificados com os valores da burguesia. Isto não quer dizer que o Evangelho também não seja seletivo, lembra o autor. Jesus não se dirigia a todos, em geral. Não falava “aos homens, em geral”: falava a cada pessoa, a partir de sua situação concreta específica: ao cego, ao paralítico, ao publicano, ao fariseu, aos sumos sacerdotes... Falava até aos ricos, mas sempre instigando-os à conversão! Com relação aos fracos, aos pecadores, aos pobres, aos oprimidos, aos marginalizados, a mensagem evangélica vai direto ao coração, à medida que cuida e atende concretamente à sua situação especiífca. Ou seja: Jesus os liberta de seus males materiais e imateriais. E o faz apelando para o protagonismo deles: “Tua fé te salvou”. Em outras palavras, o Evangelho lida com libertação de situações concretas. Não apenas uma libertação trans-histórica, até porque a vida eterna começa já aqui. Nesse sentido, nem sempre têm sido os cristãos a evangelizar. Por vezes, são outros segmentos da sociedade (membros da modernidade, revolucionários) que assumem objetivamente essa missão: sua palavra é de animação, desperta confiança, ânimo, favorece o despertar de muitos para as lutas pela justiça e pela libertação. A libertação que constitui uma herança das mais valiosas na história do Povo de Deus, com profundas raízes bíblicas, nem sempre é priorizada por cristãos. Estes preferem usar e abusar um discurso “declarativo” e não um “discurso performativo”, criativo, instigante, mais voltado para o compromisso da causa libertadora dos pobres. (cf. pp. 338-348).

Uma segunda grande parte do capítulo VII, intitulada “Assumir a Modernidade”,  é consagarada a examinar a o desafio cristão ante a consolidação da modernidade, em especial do mundo científico, de sua racionalidade: os limites das ciências, sobretudo de sua racionalidade (cf. pp. 348-370), dedicando mais umas quatro páginas à conclusão do capítulo (pp. 370-374). Esta parte começa por situar o desenvolvimento das ciências como o núcleo duro da modernidade. Mas, não atribui à modernidade toda a paternidade do conhecimento científico. Este se faz presente desde os primórdios da história humana, ainda que de modo misturado a outras formas de conhecimento (mitos, conhecimentos simbólicos, poéticos...). À modernidade, porém, atribui o mérito de ter dado um salto qualitativo em relação ao conhecimento científico, sobretudo a partir do método cientírico, tal como desenvolvido a partir do século XVII.

Relembra o autor as relações de grave tensão então existentes entre conhecimento científico e conhecimento teológico. De parte a parte, sucedem-se polêmicas terríveis de mútua recusa. Da parte da Igreja, a atitude chega às raias do absurdo: de pretender que se trate o conhecimento teológico no mesmo nível do trato dado às ciências do mundo físico. Erigem-se em verdades dogmáticas formulações próprias das elucubrações do universo religioso. Mesmo assim, uma espécie de trégua foi estabelecida, de modo que cada lado trataria de lidar com a ciência, ao seu modo: haveria uma ciência do mundo físico e outra ligada aos fenônmenos religiosos... Seja a idéia de antagonismo entre os dois campos, seja a de que, cada qual dentro do seu campo de atuação, ambas caminham paralelas não se mostraram solução. Há que se reconhecer a necessidade de que ambos os campos interajam de forma complementar. Se o campo de atuação do Cristianismo é cuidar dos pobres, dos famintos, dos desnudos, dos aflitos e prisioneiros, dos doentes, etc., a ciência tem algo a dizer sobre tais realidades. A partir daí, o discurso cristão vai ter condições melhores de cumprir sua missão. (cf. pp. 345-352).

Apenas quando se reconhece a importância da contribuição científica, é legítimo apontar-lhe também os limites. É o que faz o autor. Ao fixar seu olhar sobre os limites das ciências, prioriza uma apreciação ético-política. Reconhecendo ampla e claramente a importância das ciências – inclusive entendendo-as indeispensáveis pra a missão cristã (lembra o impacto positivo de um Teilhard de Chardin, não apenas sobre o mundo científico, mas também sobre o mundo moderno, em geral), trata de destacar alguns limites da atividade científica. (pp. 354-356). Sublinha, em especial, o risco de os cientistas usurparem o direito político dos cidadãos comuns, de decidirem entre várias situações fornecidadas pelo mundo da ciência. Não cabe ao economista, ao médico, ao físico, ao biólogo, decidir qual é a melhor escolha para a humanidade. Isto não lhes cabe. Cabe-lhes, sim, apresentar, de modo transparente, as várias hipóteses fruto de suas pesquisas, para que a sociedade decida, não eles, cada um em seu próprio campo. Uma coisa é a competência técnica do cientista, seu labor de pesquisa; outra coisa é o direito político dos cidadãos de tomarem decisões, conforme seus critérios políticos, com base nas pesquisas disponíveis, sem manipulação de cientistas que podem ocultar ou selecionar dados que lhes convenham, com o objetivo de fazer valer seus interesses.

Com apoio nas críticas levantadas pela Escola de Frankfurt às ciências (tano as de caráter empírico-experimental, quanto as de caráter dedutivo-matemático, quanto as de caráter hermenêutico), reporta-se a outros limites das ciências. Por ex.: o risco ou certa tendência ideologizante, notadamente no âmbito dos economistas, que tendem a impor decisões políticas ao conjunto da sociedade, visando aos próprios interesses. Outro exemplo diz respeito especificamente às ciências humanas (de caráter hermenêutico): em vão buscam, influenciadas pelas sociologias positivistas, dar conta de sua pretensão investigativa de causa e efeito, ao modo das ciências empírico-experimentais. Os dramas humanos são complexos demais para s definir sobre eles relações de causa e efeito. Após apontar vários limites das ciências, vislumbra a chegada de uma nova época de revolução intelectual/científica, após as três grandes revoluções intelectuais já vivenciadas: a que teve nos mitos sua grande inspiração, já há 6 ou 4 milênios antes da era cristã. E que atendeu aos desígnios dos grandes impérios no Egito e na Mesopotâmia); a do mundo grego, entre os séculos V e IV a.C, fundada na racionalidade filosófica; e a que ocorreu por volta do século XVII, de caráter empírico-experimental. Estaria por vir outra revolução científica, desta feita, com base na diversidade hermenêutica dos fenômenos humanos. Seja como for, é notável a força das ciências aos interesses dos setores privilegiados de cada sociedade. Assim como na época dos mitos, estes atenderam aos interesses dos imperadores e seus próximos; também na racionalidade desenvolvida na época helenista, os saberes de então serviam aos interesses de reis e príncipes, assim como na modernidade, as ciência têm estado a serviço dos interesses da burguesia. Tal é o fascínio dos modernos pela racionalidade científica, que até os revoluionários deixaram-se impregnar pela sedução científica, inclusive a um nível exacerbado, sem se darem conta dos limites da racionalidade científica.  (cf. pp. 355-361).

No ítem seguinte, o autor trata especificamente dos limites da racionalidade científica. Trata-se de uma crítica radical da racionalidade científica, sob uma perspectiva cristã. E que a perspectiva científica tem em vista o homem em geral, numa dimensão universal, enquanto, no sentir do homem comum, está em jogo sua vida concreta, seu problema particular, para o que a ciência não se volta. O autor cita o exemplo de Napoleão cujo exército deixava milhres de pessoas mortas atrás de si. Ele as olhava apenas na qualidade de soldados a cuprirem o seu dever. Para olhar cristão, cada um daqueles soldados é visto, antes de tudo, como gente, como pessoa, e cada um conta muito. A crítica à racionalidade científica feita pelo autor consiste, enfim, na tendência dos especialistas em usar e abusar de uma linguagem distante do homem comum. Ora, no plano político, as pessoas concretas têm o direito de entender o que lhes é proposto e de decidir conforme seus interesses concretos e presentes, e não aguardando um tempo de século depois. (cf. pp. 364-366).

Nesse sentido, reslta problemática a relação racionalidade científica e espírito evangélico. A mensagem evangélica interage com pessoas concretas, falando-lhes sua linguagem, respeitando seus condicionamentos culturais, enquanto a tendência da racionalidade científica é de lidar com um linguajar restrito às camadas privilegiadas. O período da cristandade medieval constitui um exemplo de como o discurso cristão da época fez uso da racionalidade científica da época – a escolástica -, e de como dela ficaram de fora os pobres, alvo principal da mensagem evangélica. (cf. pp. 336-370).

Conclusão – O autor aqui, socorrendo-se de John Austin (que sustenta que palavra é ação) começa reforçando o conceito bíblico de Palavra como ação. Recorre também ao texto joanino sobre a Palavra que estava desde a origem, Palavra que é Deus, Palavra que é ação. Na mensagem evangélica anunciada e testemunhada por Jesus, dizer é fazer. Para os humanos, porém, não é bem assim. Jesus já denunciava os fariseus que dizerm uma coisa e fazem outra. No plano da história, muitas vezes, a palavra serve para comunicar o contrário do que se faz. Serve, com frequência,  para esconder, para manipular, para oprimir, para dominar.

Isto não quer dizer que tais limites eliminem a positividade da palavra de Deus. Esta também pode revelar-se naquela, sempre dependendo do seu fruto. É que a Palavra de Deus sempre liberta, e, na medida em que a palavrad humana está comprometida com esse propósito libertador da Palavra de Deus, ela se acha também impregnada da Palavra de Deus. A Palavra de Deus se acha encarnada na palavra dos pobres. Os pobres são portadores da Palavra de Deus. Seu grito é o grito da Palavra de Deus, animando o processo de libertação dos oprimidos, dando-lhes força e luz. (cf. pp. 370-374).


Anexo: A tarefa dos teólogos latino-americanos na atualidade. Contribuição para um diálogo (pp. 375-406)

Nota de AJFC: Este texto é escrito num contexto de crescente perseguição, por parte do Vaticano, à Teologia da Libertação e às diversas expressões da “Igreja dos Pobres”.

O autor parte de uma constatação. Há claros sinais de insatisfação por parte de teólogos e setores eclesiásticos habituados a fazer teologia dentro das normas tradicionais, com relação ao modo latino-americano de se fazer teologia, ou como aqui se chama “Teologia da Libertação”. Há estranhamentos de todos os lados. Para se enfrentar tal obstáculo, sugere o autor que, de parte a parte, os teólogos e os setores envolvidos na produção teológica explicitem melhor sus respectivos pressupostos. Pressupostos dos quais partem para a elaboração de sua teologia.

Em seguida, cuida o autor de distribuir sua reflexão em três momentos: ponto de partida; comunicar; em busca da verdade. No primeiro tópico, após recordar a forma tradicional de se fazer teologia e, por outro lado, a irrupção de um jeito novo de se teologizar, a partir da realidade latino-amerricana, esclarece o autor em que consiste seu ponto de partida. Aqui ele vai remeter os leitores a uma passagem emblemática da Constituição Pastoral “Gaudium et Spes”, do Concílio Vaticano II. Mais precisamente, trechos extraídos do n. 62, um dos quais dispõe sobre as tarefas fundamentais que o Concílio atribui aos teólogos: a de comunicar, em linguagem compreensível, a inteligência da fé aos homens e mulheres de hoje; colobarorar com protagonistas de outras ciências, em fecundo diálogo com eles, dispostos a aprender também com eles; e pesquisar, isto é, seguir buscando a verdade inteligível aos tempos de hoje.

O autor elege um poderoso ponto de partida, e ainda o reforça com uma longa e brilhlante citação de um comentário/análise feita por ninguém mais, ninguém menos do que Joseph Ratzinger, ao tempo em que era ainda um jovem teólogo, perito do Concílio Vaticano II, a quem, à época, o próprio Leonardo Boff tinha como figura de inspiração. E, a julgar pela excelência da citação feita por Comblin, a justo título. Julguei oportuno, inclusive, ao final do resumo deste anexo, inserir toda a citação, a quem interessar possa.

Comblin ancorou seu ponto de partida num emblemático trecho de um documento conciliar, extraído do n. 62 da “Gaudium et Spes”, atinente às tarefas atribuídas pelo Concílio Vaticano II aos teólogos. Uma tríplice missão aqui é proposta aos teólogos. A pimeira reside na forma de comunicar seu trabalho. Não faz mais sentido que os teólogos sigam confinados num jargão, num jogo de linguagem hermético, incompreensível aos homens do seu tempo. Ficariam falando para si mesmos. Urge atentar para os sinais dos tempos, a indicarem a necessidade e urgência de a Igreja volta-se para o mundo, que ela é chamada a servir, em especial, a causa dos pobres. Isto supõe uma linguagem acessível aos homens e mulheres de hoje. Sem prejuízo do conteúdo da fé a ser vivida e transmitida, a forma de comunicar o teor da mesma fé cristã vai depender de cada contexto histórico-cultural de cada tempo. Falar uma linguagem que o mundo contemporâneo e os homens possam entender, até como pressuposto para o diálogo. A segunda tarefa proposta aos teólogos pelo documento conciliar é que os teólogos passem a colaborar com estudiosos de outras ciências, com figuras atentas aos clamores da contemporaneidade, inclusive no mundo das ciências, e tratem de dialogar com essas figuras. E a terceria proposta é de que, partindo do compromisso com a nova forma de comuncação e com a colaboração com estudiosos de outras ciências, os teólogos também abram suas pesquisas para os novos desafios do mundo contemporâneo, ocupando-se de perscrutar e refletir teologicamente as dores e esperanças dos homens e das mulheres de hoje.

Magnifcamente afinado com esta perspectiva e com o espírito de outros documentos do Concílio Vaticano II estava o teólogo Joseph Ratzinger, de quem Comblin recolhe uma preciosa passagem do livro do teólogo alemão, intitulado “Das neue Volk Gottes”, editado em 1969. Na citação (ver íntegra da citação, ao final deste resumo) genialmente recolhida por Comblin, o teólogo Ratzinger, entre outras propostas, destacava, com base em vários documentos conciliares (os que tratam da formação sacerdotal, das missões, do ecumenismo, da contribuição dos teólogos:
- a necessidade e urgência de superação da tendência dominante, de reduzir-se a teologia a meros registros ou sistematizações do que era dito pela autoridade papal nas encíclicas: urgia à teologia ir bem além dessa tarefa...
- tal tendência comprometia a integralidade das fontes teológicas, já que as reduzia a uma fonte específica, não apenas quanto aos desafios enfrentados, mas também quanto ao tempo (últimos cem anos);
- à medida que se alargasse o campo de pesquisa teológica, no tempo e no espaço, certamente se depararia com outros desafios tão ou mais importantes do que os até então tratados;
- os ganhos permitidos por tal audácia de pesquisa teológica viriam do necessário contato com a produção teológica de outras Igrejas cristãs, com quem os teólogos eram chamados a dialogar, recolhendo sua reconhecida contribuição;
- ganhos que certamente viriam da abertura de diálogo com os homens do nosso tempo, para além do universo cristão;
- assim fazendo, os teólogos contribuiriam de modo mais concreto para a revitalização do sentido e da experiência missionária da Igreja Católica.

Desse ponto de partida apontado pela Constituição Pastoral “Gaudium et Spes”, acerca das tarefas reomendadas aos teólogos, ponto de partida, aliás, bem comentado pelo Cardeal Ratzinger, na citação mencionada, o autor sublinha uma meia dúzia de pontos explicativos da ação dos teólogos latino-americanos. Enfatiza, sobretudo, a tarefa de comunicar o teor da fé cristã, a partir de sua ida ao povo dos pobres, por sua mudança de lugar de produção teológica. Antes, os teólogos eram, quase todos, professores de seminários e universidades. O desabrochar da experiência pastoral latino-americana os fez saírem em direção a outros espaços, a outros interlocutores. Mesmo os teólogos latino-americanos que seguiram envolvidos com o ensino em seminários e universidades passaram a reservar parte expressiva do seu tempo para irem a outros espaços sociais situados fora das fronteiras do templo. Isto constituiu um fator extraordinário de atendimento às recomendações do Concílio Vaticano II.

Outro ponto aí destacado tem a ver com o próprio método de teologizar. Já não o faziam limitando-se a transmitir, como mestres, esquemas doutrinários e catequéticos, principalmente ao público interno da Igreja, já evangelizado. Passaram a priorizar multidões de batizados que pouco ouviam a palavra da Igreja, ou desta haviam se afastado. Passaram a operar metodologicamente de modo diferente do convencional. Em vez de transmitir a doutrina, optaram por escutar mais do que falar. Optaram por abrir amplo diálogo com diferentes sujeitos eclesiais cujas falas passaram a vir entranhadas nas suas próprias. Não se tratava mais de um discurso saído de uma pessoa única, mas de ressoar o que era produto de um amplo diálogo com diferentes sujeitos.

Um terceiro ponto destacado tem a ver especialmente com o trabalho dos teólogos e teólogas junto ao povo dos pobres, tratando-o como evangelizador, de quem também recolhiam o que o Espírito tinha a dizer àqule momento. Ao perscrutarem os sinais dos tempos, o fizeram sobretudo no meio do povo dos pobres e da opção preferencial pelos pobres, como foi acolhida em Medellín. Tal contexto sócio-histórico fez os teólogos latino-americanos entenderem, de perto, a experiência do que Ratzinger chamava de “Paixão humana”, à medida que eram capazes de interpretar os clamores dos pobres do continentes, contra séculos de cativeiro, bem como a esperança de libertação, que lhes chegava pelos sinais dos tempos.

Esse jeito novo de fazer teologia incomodava a alta hierarquia. Esta tratava de controlar a atividade teológica. Em parte conseguiu, na medida em que parte expressiva dos teólogos era formada de sacerdotes, que, por força de sua condição, deviam ter laços orgânicos estreitos com a hierarquia, uma vez que atuavam em espaços mais diretamente controlados pela hierarquia: seminários, universidades católicas, atividades pastorais, etc. Nesse sentido, os teólogos e teólogas leigos contam com um clima mais favorável de autonomia para fazerem seu trabalho. Por outro lado, tais barreiras eclesiásticas à produção teológica suscitam a necessidade de se situar, com mais precisão, o estatuto do carisma de se fazer teologia. Este precisa ser entendido, não como um ministério convencional, mas como um dom, cujo exercício precisa ser respeitado. Nesse sentido, as tarefas que o próprio Concílio Vaticano II atribuiu aos teólogos – de comunicar, de colaborar e de pesquisar (buscar a verdade) – bem se presta para esclarecer e orientar as atividades dos teólogos. Ao serem chamados a essa tríplice tarefa, os teólogos caem em campo para colaborar com protagonistas de diferentes campos de saberes, inclusive os saberes produzidos pelo povo dos pobres, e, a partir daí, dar sequência à pesquisa, isto é, à busca da verdade, que não tem dono. Nesse empenho, os teólogos têm a seu favor a posição de figuras de referência nas ciências da interpretação e da linguagem, tais como Hans G. Gadamer, Paul Ricoeur, Jean Ladriêre...

Com séria fundamentação nesses e noutros autores, Comblin cuida de sublinhar a importância da crítica, tal como acontece em outros campos de saberes (na literatura, nas artes, na história, na sociologia, na antropologia, na psicologia inconsciente, etc.) também para o campo do fazer teológico. A sociedade contemporânea já não aceita saberes pretensamente infensos à crítica, principalmente se se trata de um campo de saber – e é o caso da teologia – que lide com a comunicação, sendo o teólogo o homem da palavra, no âmbito da religião. É identificado como o homem da comunicação no campo do cristianismo. Como tal, precisa pôr-se em contato com os homens e mulheres do seu tempo, para sintonizar a linguagem, o discurso adequado a diferentes meios, devendo lembra-se de que a Igreja é composta por diferentes segmentos com linguagem igualmente diferenciada. Para os teólogos latino-americanos, já não se trata de falar para seus pares, como se dá no campo dos cientistas. Têm que estar em diálogo com diferentes meios, especialmente no meio dos pobres, entendendo e assimilando seu linguajar, para fazê-lo ressoar em sua fala. (cf. pp. 386-390).

É assim que se vai vencendo o medo de não parecer ortodoxo. O autor lembra que certos discursos ortodoxos afastam os crentes, aproximando-os do ateísmo, enquanto discurso tido heterodoxo e até como ateu pode ajudar na conversão de muita gente. O extremado zelo pela ortodoxia não livrou a cristandade de cometer o grave pecado  de omissão, por duas vezes: 1) não ouviu os clamores dos africanos escravizados, arrastados à força da África para as Américas; 2) fez ouvidos moucos ao grito dos operários nos albores da industrialização.

Ele dá, também, a esse propósito, o exemplo de Pauo apóstolo. Ao pregar para os gentios, ele, sem ceder em nada ao núcleo da fé, vai comunicar-se a partir da língua dos gentios. Ele faz uso do linguajar dos pagãos, e nesse linguajar introduz um conteúdo novo, o conteúdo da fé cristã. Focando a missão dos teólogos latino-americanos, o autor sustenta que a tarefa propriamente de evangelizar cabe, não aos teólogos enquanto teólogos, mas ao povo dos pobres. Um teólogo pode, sim, evangelizar, mas não enquanto teólogo, mas enquanto cristão O teólogo lida com o universo das palavras, é um especialista da palavra, enquanto o evangelizar requer muito mais que isto: requer que, não apenas as palavras, mas toda a pessoa esteja envolvida, com palavra, com gestos, com práticas. Tarefa do teólogo é de articular os pobres, despertar neles sua vocação de evangelizadores. (cf. pp. 392-396).

A tarefa de comunicar assumida pelos teólogos está ligada à permanente busca da verdade. Buscar a verdade não quer dizer possuí-la. Esta é uma grande tentação dos que se preocupam demais com os dogmas, com a ortodoxia. A busca sincera da verdade leva à descoberta de que ninguém dela é dono, a ela vai acedendo processualmente, e quanto mais a busca, vai descobrindo que não basta chegar a uma só dimensão dela, que é uma totalidade. Esta é uma tendência dos dogmas – a pretensão de conhecer a verdade, apenas por uma de suas dimensões, de que o dogma dá conta, mas parcialmente, a menos que perceba a necessidade de ir além daquela dimensão em busca da totalidade. Outro risco grave de se pretender a propriedade da verdade evoca a posição dos fariseus que pretendiam conhecer toda a verdade, a partir de formulações parciais da mesma... É o Espírito Santo que nos vai acercando da verdade, por Seus caminhos. (cf. pp. 3956-397).

Chegar perto da verdade é uma constante busca, a ser feita com paciência, humildade e persistência, uma vez que ela se acha encoberta por múltiplos véus: o véu do medo à vida, o véu do medo do outro, o véu da ideologia. A busca da verdade encontra, com efeito, a barreira do medo à vida, à medida que temos a tendência a preservar nossa segurança, detestamos o risco, afastamo-nos do desconhecio, tememos perder nossas comodidades, tememos o futuro, agarramo-nos ao presente, à rotina, à repetição. Outro é o véu do medo do outro. Tememos o estrangeiro, sentimo-nos por ele ameaçados, dele queremos distância. Por outro lado, temos medo da verdade: cedemos facilmente à mentira para conservar inalterada nossa posição, nosso agir. Conhecer e assumir a verdade implica mudança, enquanto nos sentimos confortáveis com nossa posição ainda que encoberta pela mentira. É preciso desapego para seguir em busca da verdade. O próprio Deus pode esconder de nós a verdade, se não nos tornamos simples e humildes, se não estivermos dispostos a tomar a prática e não o discurso como critério de verdade. (cf. pp. 398-400).

Cabe aos teólogos latino-americanos exercitar uma expressão adequada da teologia que produzem. Uma condição para tanto é evitar fazer ouvidos moucos ao que diz o Povo de Deus, em sua marcha. Não raro, existe a tentação de expressar tão só uma opinião estritamente pessoal, sem levar em conta o sentido coletivo do que é vivido e expresso pela fé do povo dos pobres. Faz-se aqui o que se constata às vezes nas apresentações dos trabalhos feitos em pequenos grupos: quem é encarregado de expressar a voz do grupo acaba comunicando apenas suas próprias opiniões. É tarefa dos teólogos latino-americanos empenhar-se em expressar o novo da realidade do Povo de Deus, o novo que aponta para o futuro. Isto implica riscos de engano. Mas, os erros fazem parte do processo de produção teológica, tal como acontece no âmbito das ciências. Só não erra quem não produz. Importa exercitar a audácia de lidar com prospectivas. A verdade não se encontra completa apenas ao limitar-se a constatar o que existe. Isto é o que fazia a teologia tradicional, recorrendo às “Summae Theologicae”. Estas não parecem ter mais lugar nos dias de hoje. A verdade que o Espírito inspira nos chama para a construção do futuro. A verdade total não está no que existe, mas no que há de vir, pela força do Espírito e com a colaboração também dos teólogos. (cf. pp. 401-406).


Citação extraída por Comblin desde RATZINGER, J. “El nuevo Pueblo de Dios”. Barcelona:
e uma tendência fundamental, que pode caracterizar-se como abertura dentro da teologia, na qual fica ultrapassada uma forma estreita de teologizar que poderia definir-se, rebaixando-a um pouco, como teologia de encíclicas, para chegar a uma maior largura do horizonte teológico. Teologia de encíclica significa uma maneira de teologia em que a tradição parecia restringir-se pouco a pouco às últimas manifestações papal. Em muitas manifestações teológicas antes do Concílio e ainda durante o Concílio, podia perceber-se o empenho de reduzir a teologia a ser registro – e talvez também sistematizHerder, 1972, pp. 318-321:

“Quase todos os documentos, mas particularmente os que tratam da formação dos sacerdotes, das missões, do ecumenismo, da revelação divina e da Igreja, estão penetrados dação – das manifestações do magistério. O problema já parecia suprimido de antemão, o sistema dominava face ao acesso interrogante da realidade.”

“O Concílio, porém, manifestou e impôs também a sua vontade de cultivar de novo a teologia desde a totalidade das fontes, de não enxergar essas fontes unicamente através do espelho da interpretação oficial dos últimos cem anos, mas de lê-las em si próprias; manifestou a sua vontade não só de escutar a tradição dentro da Igreja católica, mas de pensar e recolher criticamente o desenvolvimento teológico das demais Igrejas e confissões cristãs; deu finalmente o mandato de escutar as perguntas do homem de hoje em si próprias, e, partindo delas, repensar a teologia, e sobretudo, escutar a realidade, as coisas que estão aí, e aceitar as suas lições.”

“Podemos dizer, a propósito da orientação geral que deve prevalecer de acordo com o Concílio, que uma teologia magisterial que nasce do medo do risco da verdade histórica ou do risco da realidade, seria uma teologia diminuída, uma teologia de pouca fé desde o seu ponto de partida, e, afinal de contas, uma evasão ante a grandeza da verdade. Seria uma teologia conservadora no mau sentido da palavra, preocupada somente pelo fato de conservar e não pela realidade. E ela não seria certamente uma teologia missioária, muito pelo contrário”.

“Aí está o modelo fundamental daquilo que significa, que deve e pode ser a abertura conciliar enquanto tal: a teologia recorda de novo a sua obrigação querigmática, a sua ligação com pregação que ela inclui. Mas inclui a ligação com o homem real, inclui que o teólogo deve entrar na experiência fundamental da paixão, da existência humana para viver de novo plenamente e a fundo o problema teológico, para sofrê-lo em cheio e assim tornar a teologia capaz de falar dentro dessa paixão humana. Não nos esquecemos de que em definitivo o Verbo divino se faz para nós palavra de pregação, quando desceu pessoalmente até o fundo da paixão humana, até às últimas profundezas do descensus ad infernum , e que este é de novo ocaminho para que a teologia se torne palavra viva”.


“A tripla abertura que pediu o Concílio: abertura às fontes, abertura aos outros cristãos, abertura às perguntas da humanidade inteira, não é expressão de um desejo de secularização, de uma acomodação barata, mas exprime em última instância o retorno ao sentido total da teologia, isto é, ao seu dever missionário. O dever missionário pede evidentemente a audácia da totalidade do ser ciistão, e daí a audácia do humano, não para parar aí mas para lhe dar em Cristo e na sua paixão o sentido divino ao qual está chamada”.  (RATZINGER, J. El nuevo Pueblo de Dios. Barcelona: Herder, 1972, pp. 318-321. Original alemão: Das neue Volk Gottes, 1969. Düsseldorf: Patmos-Verlag, 1969. Citado em COMBLIN, J. A Força da Palavra. Petrópolis: Vozes, 1986, pp. 378-380).

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